Rede de Atendimento Psicanalítico convida à reflexão sobre Gênero e Infância

por Cláudia Arbex, Ilana Bernstein e Vanessa Chreim

No último dia 8 de novembro, a Rede de Atendimento Psicanalítico convidou o público para uma interlocução sobre gênero na clínica psicanalítica, especialmente com crianças. Vanessa Chreim apresentou um texto que foi comentado por Ilana Safro Berenstein e Claudia Arbex e, em seguida, houve espaço para um rico debate com os presentes.

Tratar desse tema é um grande desafio atualmente, considerando-se a intensa produção teórica em curso. Na ocasião, a proposta foi a de apresentar reflexões, partindo da experiência clínica e de suas interrogações. Enfatizou-se a compreensão das identidades de gênero como uma construção singular e subjetiva do sujeito, em seus aspectos conscientes e inconscientes, a partir de uma perspectiva não patologizante.

Retomando a declaração de Roudinesco de que não podemos tomar a obra freudiana como atemporal, as psicanalistas falaram sobre a importância de ter em vista o atravessamento histórico da construção do saber psicanalítico para podermos sustentar nosso pensamento teórico-clínico, revisitando criticamente as bases epistemológicas.

Uma das perguntas colocadas foi: de que modo a psicanálise pode contribuir para pensar este tema, que tem promovido encontros e desencontros entre as diferentes áreas do conhecimento?

Da sexualidade infantil perversa polimorfa ao entroncamento gênero-sexualidade, são inúmeros os conceitos e as articulações psicanalíticas que elucidam o lugar do gênero na constituição psíquica e na cultura.  É vasta a literatura que nos mostra o quão complexos são os processos de identificação, tanto em relação à variedade de objetos, quanto em relação à natureza desta (primária, secundaria, incorporadora, melancólica, histérica).

Nesse sentido, o evento abordou algumas considerações acerca da construção da identidade de gênero, que percorre diversas vias: intrasubjetiva, intersubjetiva e transubjetiva, de forma a conectar indissociavelmente o individual ao coletivo. Associado à densa bagagem cultural e narcísica dos pais, na maioria das vezes, o sexo se torna gênero e o pacote simbólico que acompanha essa passagem é incomensurável. A questão de gênero foi situada como uma elaboração que diz respeito a todos nós, a partir de um discurso social sobre o ser homem e ser mulher, em sua dimensão tanto cultural e coletiva, quanto particular, no que toca as vicissitudes da vida de cada pessoa.

Colocaram ainda outra interrogação: será que ainda faz sentido nos atermos a uma compreensão sobre a castração que se centra na diferença anatômica entre os sexos, concretamente?

Apoiadas em contribuições de Jean Clavreul (1990), enfatizaram que as consequências psíquicas da descoberta da diferença sexual dizem respeito a uma importante mudança de posição subjetiva quanto possibilidade de admitir a alteridade em diferentes aspectos : 1) A diferença de gerações 2) A diferença entre fantasia e realidade. 3) A diferença entre a sexualidade infantil e a adulta 4) A diferença do tempo da ingenuidade para o tempo da construção de conhecimento. 5) A alteridade presente em todos os relacionamentos, nos quais nunca é possível saber o que somos para o outro. 6) A alteridade em relação a si mesmo, aquilo que de si desconhece, o inconsciente. 7) A admissão da castração dos adultos (pai e mãe), no sentido de interditar um poder sem limites sobre o corpo e o psiquismo dos filhos.

Foi importante destacar as particularidades desta questão na clínica com crianças, que é diferente da do adulto. Apesar de se considerar que com estes últimos trabalhamos com os traços infantis, o período da infância é uma fase inicial de constituição do psiquismo, durante o qual a identificação primária tem um papel central a partir da relação especular da criança com o outro. O analista de crianças também as escuta levando em conta o colorido das teorias sexuais infantis, que ao longo da transição para a vida adulta são reformuladas.

O tema se presentifica nas brincadeiras, onde as crianças compartilham com o analista a leitura sobre seu lugar no mundo. Para ilustrar, foi apresentada uma vinheta clínica, que permitiu refletir sobre a interpretação do paciente e dos pais com relação à circulação do falo na família e perceber como, na análise, a criança pôde expressar sua ambivalência quanto ao seu lugar.

Freud (1932) nos dá uma interessante contribuição ao tratar das brincadeiras como uma tentativa da criança de elaboração de suas questões. Na brincadeira de boneca, o autor pontua que tanto pode representar uma fantasia ativa – como quem se identifica com a mãe, que cuida de um bebê – como passiva, na qual a criança se retrata sendo cuidada pela mãe. A partir deste e de outros exemplos, transcendeu-se às rasas interpretações de associar certas brincadeiras a determinado gênero. Esse olhar é fundamental porque nos ajuda a compreender, à luz da singularidade e do contexto histórico do paciente, o que uma criança – menino ou menina – tenta perguntar, simbolizar e compreender quando brinca com bonecas, por exemplo.

Opondo-se à noção de um padrão de crenças engessado socialmente, que deságua no indivíduo e que transforma em estigma aquilo que se manifesta contrariamente ao convencional, a questão de gênero nos convida a pensar num trânsito entre as identidades e os papéis sociais. Citou-se o depoimento do sociólogo e ativista transexual, Miguel Missé: “Nos haviam explicado que ser trans era nascer em um corpo errado e assim seguem contando os grandes fenômenos midiáticos. Dizer que nosso corpo tem um problema e não que a sociedade é muito limitada, nos atribui a responsabilidade de resolver esse problema …A solução é convidar à transição de gênero o menino que expressa sua feminilidade extrema ou a menina com uma masculinidade extrema? O que eu quero é que os homens possam ser muito femininos e as mulheres muito masculinas”.

Na especificidade da clínica com crianças, perguntam se pode ser preciso e benéfico um diagnóstico que diz da sexualidade adulta futura de uma criança. Parafraseando Beauvoir, lembrou-se que há um processo subjetivo de apropriação do “tornar-se mulher”, que pode demandar tempo mais longo do que o da maturação do corpo. Do mesmo modo, esse tempo se faz necessário na constituição de um menino. Além disso, refletindo sobre aquilo que circula na dinâmica das relações familiares, não se pode minimizar as expectativas, projeções e todo tipo de subjetividade que se transmite dos pais aos filhos por vias inconscientes, e que marcam o sujeito de modo tão fundamental. Aquilo que não pode ser elaborado no adulto com relação à própria sexualidade pode causar um mal estar na relação com a sexualidade dos filhos, portanto também a indefinição se apresenta como grande fonte de angústia para os pais.

Ponderou-se também sobre algumas diferenças da infância de hoje, na cultura ocidental urbana, daquela da época de Freud. Em tempos de iPad, Facebook e Google, temos mais acesso, talvez mais narcisismo e mais imediatismo. Certas descobertas podem ser mais precoces na atualidade, o que nos convida a olhar para a infância sob uma nova perspectiva.

A cautela em fazer diagnósticos na infância nada tem a ver com não dar relevância e acolhimento para os conflitos de gênero vividos nesta fase, que evidentemente podem causar muitas dores e inibições. Mas tem a ver com discernir que podem haver outras questões envolvendo o processo de construção do psiquismo. Nossa função é de escutar, dar-se como testemunho, reconhecer o conflito, cuidar, acolher, nomear, ajudar a elaborar e a introjetar pulsões, dar suporte ao paciente para representar seu sofrimento e se responsabilizar por ele, apesar do que lhe possam ter feito.

Na clínica da adolescência, as questões retornam, ou às vezes persistem; segue-se na mesma ética: de não patologizar, de acompanhar o sujeito na escuta de seus desejos e de sua(s) possibilidade(s) de ser. E, sobretudo, de aguentar não saber.

Aborda-se então um importante diferencial da clínica psicanalítica. Para não compactuar com a precocidade dos diagnósticos tão determinantes, é preciso que o analista possa não saber a priori sobre o sujeito, para possibilitar ao analisando voltar-se a si mesmo, no tempo da análise, e usar a própria voz nas eventuais definições. Neste sentido, resgatou-se que o papel do analista é contribuir para que o corpo e o psiquismo possam ser historicizados em cada caso, permitindo que se desenhe o pertencimento, ao mesmo tempo em que o sujeito possa ser autor de sua biografia. A transidentidade chega ao consultório como uma possibilidade reivindicada pelos sujeitos e assim ela é considerada e legitimada, tanto quanto qualquer outra.

Terminadas as apresentações, em uma conversa fluida e engajada, o público se envolveu trazendo comentários e perguntas.

Referências

Clavreul, J. et all. O Casal Perverso, in O desejo e a perversão, 1990.

Freud, S. (1932). Feminilidade. In Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise. Conferência XXXIII. In: Edição Standart Brasileira das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

Depressão: perdas, danos e ganhos. E o conto: A terceira Margem do Rio (Guimarães Rosa)

por Cláudia Arbex

Depressão: perdas, danos e ganhos
E o conto de Guimarães Rosa: “A terceira margem do rio”

“O psiquismo, acontecimento que acompanha toda a vida humana sem se localizar em nenhum lugar do corpo vivo, é o que se ergue contra um fundo vazio que poderíamos chamar, metaforicamente, de um núcleo de depressão. O núcleo de nada onde o sujeito tenta instalar, fantasmaticamente, o objeto perdido -objeto que, paradoxalmente, nunca existiu.

A rigor, a vida não faz sentido e nossa passagem por aqui não tem nenhuma importância. A rigor, o eu que nos sustenta é uma construção fictícia, depende da memória e também do olhar do outro para se reconhecer como uma unidade estável ao longo do tempo. A rigor, ninguém se importa tanto com nossas eventuais desgraças a ponto de conseguir nos salvar delas. Contra esse pano de fundo de “nonsense”, solidão e desamparo, o psiquismo se constitui em um trabalho permanente de estabelecimento de laços -“destinos pulsionais”, como se diz em psicanálise- que sustentam o sujeito perante o outro e diante de si mesmo.

Freudianamente falando, a subjetividade é um canteiro de ilusões. Amamos: a vida, os outros e sobretudo a nós mesmos. Estamos condenados a amar, pois com essa multiplicidade de laços libidinais tecemos uma rede de sentido para a existência. As diversas modalidades de ilusões amorosas, edipianas ou não, são responsáveis pela confiança imaginária que depositamos no destino, na importância que temos para os outros, no significado de nossos atos corriqueiros. Não precisamos pensar nisso o tempo todo; é preciso estar inconsciente de uma ilusão para que ela nos sustente.

A depressão é o rompimento dessa rede de sentido e amparo: momento em que o psiquismo falha em sua atividade ilusionista e deixa entrever o vazio que nos cerca ou o vazio que o trabalho psíquico tenta cercar. É o momento de um enfrentamento insuportável com a verdade. Algumas pessoas conseguem evitá-lo a vida toda. Outras passam por ele em circunstâncias traumáticas e saem do outro lado. Mas há os que não conhecem outro modo de existir; são órfãos da proteção imaginária do “amor”, trapezistas que oscilam no ar sem nenhuma rede protetora embaixo deles.”
*Maria Rita Kehl (Folha de São Paulo, Uma existência sem sujeito, 2003)

Pensamentos

Nomear o sofrimento, investigar suas causas, explorar suas manifestações, descobrir que a dor se expressa com diferentes intensidades e tons. Encarar essas dores, que revelam tanto. Entrar em contato, tirar o véu, abrir a ferida. Todo esse movimento coincide com as leituras sobre as depressões; permite que eu faça os nexos e revisite minha análise pessoal, a minha clínica, as percepções intersubjetivas no contato com os pacientes.
O entorno, no meio do qual vivemos, é de luz e sombra, espaço e compressão. E sob essa iluminação difusa o eu se guia, entre os ideais que cria e as realidades internas e externas , das quais se ressente tanto.
Uma nova linguagem permite que se explore mais a fundo outro universo. Amplio minha escuta ao apreender o “idioma” da tristeza: tristeza branda, tristeza profunda, histórica, tristeza ressignificada, tristeza contingente, que vai e vem, tristeza permanente, que está, e que, mesmo assim, pode dar espaço para alguma alegria e humor. Ou pode cortar o ar, fechar as portas e janelas, comprimir e desvitalizar, e ganhar outros nomes: depressão e melancolia.

A depressão

A depressão toma o sujeito, coloca-o num lugar de ar rarefeito, ladrão da energia do viver, da troca e da abertura.
O deprimido força-se a dar conta da própria vida, enfrentar o desânimo, as horas de trabalho, os encontros e compromissos; enfrentar os minutos longos de um dia que termina no sono e recomeça muito cedo, às vezes nas madrugadas insones, outras vezes ao abrir dos olhos.

A depressão impede essa abertura para o novo, porque se refere a um desinvestimento, empobrecimento da alma, da vontade. Cerram-se os olhos para a luz, abrem-se para a escuridão densa de uma sensação pesarosa.

A depressão eclode a partir de uma perda, separação de um objeto, rompimento de uma posição psíquica que sustenta uma ligação, reproduzindo aquele momento inicial de desamparo, da percepção da fragilidade da ilusão de ser único, e de ser um com o outro. Trata-se de uma situação traumática, contra a qual a impotência do sujeito humano o coloca em contato com os perigos vindos de fora e de dentro. Trauma que permanece solto e não transcrito, sem representação possível. Angústia e depressão abrigam- sob diferentes aspectos- traços do desamparo infantil.

Pode-se dizer que a angústia fala de um perigo por vir, endereçando-se ao futuro; a depressão, ao contrário, aponta para um fato consumado e se refere a um passado.

Para Green (1988) “a separação do corpo da mãe expõe o frágil eu do recém nascido a ataques de duas origens: um afluxo, uma intoxicação vinda do exterior, e um influxo, interno, de exigências e necessidades pulsionais. ”

Refletindo sobre os primeiros contatos com esse sentimento de perda do objeto ou de aspectos dele, Delouya (apud, 2001) aponta que “a superação ou vulnerabilidade a esse estado (depressivo), dependerão, em primeiro lugar, do objeto- da sua disponibilidade para com a criança desde os primeiros momentos de vida e, consequentemente, do trabalho de luto”, e completa dizendo que “o afeto depressivo situa-se nesse ponto central de transição, constitutivo do psiquismo, em que a abdicação narcísica da onipotência e da fusão, se faz necessária.”

Remetida às primeiras ligações leio em muitos escritos que a presença materna continente (ou daquele adulto que cuida e faz esse papel), é condição fundamental para que o psiquismo em constituição possa renunciar a essa fusão, que faz dele onipotente e objeto narcísico, e que ao mesmo tempo o aliena de si mesmo. Assim, quando essa condição não se faz presente, o sujeito estaria impossibilitado de reinvestir-se, de usufruir de uma condição de desapego.

André Green (1988) chama de estrutura enquadrante o que vem com o apagamento do objeto materno, mas apenas na hipótese do amor do objeto ser suficientemente seguro, podendo desempenhar, desse modo, o papel de continente de um espaço representativo. A criança pode suportar uma depressão temporária, se o objeto materno pode ser sustentado, mesmo não estando lá. Trata-se de ter conquistado a garantia da presença na ausência, por conta da possibilidade de preencher esse vazio com fantasias, ou seja, “investimentos eróticos e agressivos sob a forma de representações de objeto.”

O vazio nunca é percebido como tal pelo sujeito, já que a libido ocupa o espaço psíquico, mas acaba por desempenhar o papel de uma “matriz primordial dos investimentos futuros.” (Green, 1988)
Se, ao contrário disso, perpetua-se a simbolização da ausência, dificulta-se a construção fantasmática própria do trabalho de luto. Como pontua Horstein, “não há futuro psíquico possível sem tramitação de certas perdas. O depressivo é acossado de todos os lados: pelo objetal (perda do objeto), pelo narcísico (condicionado pela função do objeto na economia narcísica) e pela ambivalência(desfusão pulsional). Trata-se de uma batalha.” (Hornstein, 2008)

Mas quando e como o amor do objeto não é suficientemente seguro ou continente?

A mãe deprimida ou melancólica pode oferecer essa continência, nos primeiros tempos de vida da criança?

É provável que a mãe esvaziada de libido não possa se ligar à criança, a não ser com um frágil fio de suficiência, cuidando das necessidades de sobrevivência. Assim, com um investimento focado no apoio e na conservação, o psiquismo infantil ficaria a mercê do objeto que lhe oferece o mínimo necessário, sem nexos fortes de sustentação narcísica.

A sustentação narcísica remete ao eu–ideal, que necessita ser vivenciado mas também, e sobretudo, substituído. O eu-ideal constitui, nos termos de Lacan, a grade inicial ou o molde primário, como reflexo especular do corpo da mãe. Contudo, embora apareça como um projeto para a aquisição do próprio corpo, do eu, “essas feições iniciais –do ideal- inerentes ao estado de desamparo, colocam este eu incipiente em apuros, nas fronteiras da primeira configuração de si. “Sem um manejo e uma condução apropriados pelo objeto, o sujeito permanecerá fisgado à imagem do outro.” (apud Delouya, 2001)

Que caminho percorre o eu-ideal quando há uma possibilidade de separação do objeto?

As frustrações, que se iniciam com as ausências do objeto, e a falta de respostas imediatas do desejo de satisfação são o resultado do encontro com a realidade, com a cultura. Se o sujeito pode situar-se nesse lugar de incompletude, pode do mesmo modo, construir fantasias e ideais. Passa, então, de uma posição predominantemente narcísica para outra que, em contato com a realidade, projeta diante de si um ideal que substitui o narcisismo primário.

Assim, o ideal de eu representa um formação narcísica que nunca é abandonada e, desse ponto de vista, é estruturante do psiquismo de um indivíduo.

Ainda a respeito das primeiras relações experimentadas pela criança, volta-se a atenção para a condição psíquica da mãe, primeiro objeto de investimento libidinal. Desse modo, a maneira como ela transita pelas subjetividades próprias e alheias (da sua criança interna e externa), teria repercussões importantes na constituição de um psiquismo incipiente em vias de se estruturar.

Maria Rita KEHL (2009) aponta para a vivência de um vazio não criativo na criança. Introduz a ideia de que uma mãe excessivamente boa, que não dá espaço nem tempo para que se organize uma resposta em meio ao “nada” deixado pela sua ausência. A criança, assim, ficaria refém da própria inércia, entregue à movimentação exaustiva e invasiva dessa mãe, ansiosa por atender todas as suas (prováveis) necessidades; não haveria espaço para o desejo, porque não haveria falhas, nem lacunas e tudo aconteceria antes de um pedido, antes da necessidade se apresentar, preventivamente. Estando impedida de vivenciar o auto-erotismo (no sentido de servir-se dele para tolerar um tempo que se demora) e, ao mesmo tempo, ocupar-se com fantasias, para impedir o transbordamento do excesso de pulsão, a criança naufragaria no próprio vazio. Vazio de uma relação que não se estabeleceria entre si e o outro, nem nos gestos, nem no olhar, nem em imagens.

Entendo que afetos como o ódio do objeto- pelo abandono e pelo o que ele não deu- e o desamparo, precisam ser experimentados e de algum modo, suportados, para dar lugar a uma movimentação direcionada a uma superação dessa condição. Essa “superação” se traduziria por uma introspecção, uma capacidade de se voltar para dentro e, consequentemente, encontrar um eu diferenciado, apartado do outro.

Necessária para a constituição do psiquismo, Winnicott (2005) fala de uma capacidade de introspecção, que seria percebida e conquistada a partir do contato com um tempo próprio durante a ausência do objeto primordial. Ele a nomeia como depressividade: condição que permitiria forjar e conhecer a própria singularidade, apoiada em uma relação que teria tido lugar entre mãe e filho, num movimento de interação no qual um e outro se reconheceram.

De outro modo, impedido de experimentar uma introspecção criativa, o sujeito faria uma tentativa de anular a separação, a distância e o intervalo no tempo, para impedir que o ódio se instale e atue sobre o objeto, destruindo-o e condenando o sujeito a uma vazio insuportável. Mas é exatamente nesse intervalo, no tempo e no espaço, que está a saída para a construção de uma vida interna mais autônoma e menos alienada.

Uma relação simbiótica com a mãe, que insiste, tem efeitos nefastos no psiquismo. Assim como a insuficiência da mãe alquebrada, enfraquecida, o excesso da mãe eficiente também predispõe o sujeito a um vazio sem vitalidade, como duas paredes próximas, como uma fenda muito estreita.

Cada perda é vivida como morte, aprofunda-se e estreita-se a fenda. Trata-se de uma ferida aberta, sem cuidados. Trata-se da ausência de Eros, porque as separações são vistas e sentidas como um desligamento, um esvaziamento, um empobrecimento do próprio ego.

De acordo com MacDougall, se o psiquismo fica fixado a uma imago objetal arcaica, ficará mais tarde dependente de certos objetos, com uma intensidade que procura neles “o segmento perdido da estrutura psíquica”. (apud Sendyk, 2009)

A dependência química, por exemplo, pode servir de empréstimo para uma reação contra a condição depressiva que se impõe ( uma defesa), mantendo a ilusão de uma união fusional nunca desfeita com a imago materna. Funcionaria como um registro de narcisização, mesmo que artificial. Seguindo a idéia de uma prótese narcísica, ou de um artificialismo, a adicção ou qualquer tipo de dependência severa, parece servir como recheio de um vazio intolerável, vazio que denuncia a falta de resposta do outro.

Faces da Melancolia

A identificação narcísica é a mais primitiva, e fixa o sujeito numa posição de dependência total do objeto, concreta e sem intermediação simbólica alguma. Conserva o vínculo em que o objeto e o eu são os duplos um do outro.

A identificação melancólica, como uma das patologias narcísicas, é a forma fracassada da identificação simbólica com o ideal. Jean FLORENCE (1984) considera que, na melancolia, a perda do objeto não dá lugar a um luto, processo durante o qual a dor é vivenciada por algo que, dia após dia, a realidade faz reconhecer como perdido; nessa patologia, a perda do objeto dá lugar “a uma ligação sadomasoquista sem medida, delirante, no cenário do eu, fora de toda obediência à realidade.”

A impossibilidade de deparar-se com a insatisfação, assimilar o ódio pelo objeto que instaura a falta, e transitar num espaço de tempo que permita criar algo próprio, torna o sujeito propenso a uma depressão paralisante, à espera, sempre passivamente à espera do Outro. Um Outro que se tornará seu intérprete para sempre.

A tristeza profunda ou melancolia, também pode ser escutada como “sinal de um ego primitivo ferido, incompleto, vazio.” ( KRISTEVA,1989)

Para Freud, a angústia de morte da melancolia é atribuída a um ego resignado, por se sentir odiado e perseguido pelo superego, em vez de se sentir amado. “Com efeito, viver tem para o ego o mesmo significado que ser amado: ser amado pelo superego.” (FREUD, 1923)

É a falta que dá lugar ao desejo. A falta é instaurada pela insatisfação, como um alargamento espaço temporal, e necessita ser substituída por uma construção singular, sob pena de ser transformada em um buraco negro. Essa substituição, porém, só se torna possível a partir de um movimento de diferenciação e separação. O desejo precisa de espaço e tempo para ser reconhecido, legitimado. Tempo de esvaziar para preencher, espaço para perceber-se separado. Duas condições que, se sustentadas, podem fazer da falta uma pré-condição para que o psiquismo se organize e sustente as renúncias, e a partir delas, possa fazer escolhas.

Mas a falta pode também tornar-se um buraco na malha representativa do eu, pelo qual se esvai a energia libidinal. Esse vão sem significação, expressa a impossibilidade do melancólico de se assegurar da presença do objeto, dos sedimentos das identificações primárias. Esses constituem e servem de sustentáculos das montagens fantasmáticas por meio dos quais o sujeito investe os objetos do mundo.

Desejo é movimento. O sujeito desejante pode erguer um projeto. O depressivo não acha que vale a pena.

Edler (2008) escreve que “O estado de desejo ou, em última instância, o desejo insatisfeito pelo desencontro com o objeto que com ele não coincide totalmente manterá o psiquismo em movimento.”
O freio do sujeito deprimido às vezes se manifesta numa atitude de “não saber”; qualquer outro sabe mais sobre ele mesmo. O referencial externo o confunde e invade de mandatos contraditórios, de todos os tipos, com todas as demandas de histórias alheias.

Maria Rita kehl (2009) enfatiza que:
“A capacidade de captar o afeto de um outro precede a aquisição da linguagem. Nada resta à criança senão reagir à experiência afetiva da mãe ……Afora o que representa para a mãe, a criança não possui existência psíquica possível: fonte de vida para o filho, ela é também seu aparelho de pensar.”

É nessa condição de desamparo e dependência que o sujeito fica a mercê do outro, de um saber externo, de significantes que vazam de um olhar, do som de uma voz familiar, do calor do contato. Entregue aos cuidados do outro, sua vida só tem continuidade nesses encontros. O rompimento desse ciclo torna-se algo assustador, como a morte.

Toda vez que a separação e a diferença deixam de ser percebidas como aquisições psíquicas, uma situação desse tipo passa a ser temida, como se fosse uma perda, como um luto ameaçador e empobrecedor.

A produção imaginária nos depressivos é escassa, a pobreza das formações imaginárias deixa o sujeito preso a um oco psíquico. Por isso a ilusão de uma união fusional com a imago materna precisa ser mantida a todo custo. Mesmo que essa ilusão seja substituída por tudo que envolve o princípio de realidade, o desejo de fusão é uma busca permanente e nunca é saciado. Todo adulto tem em si uma criança que aspira, como uma única saída do desamparo, à união total com o outro. O erótico pressupõe a dissolução de um estado de existir descontínuo, e promete uma ocupação integral do ser. Não há distância, não há diferença possível.

Quando se vence a luta contra a divisão primordial que dá origem ao individuo, escreve MacDoughall (apud Sendyk, 2009), “cede-se lugar a ajustes variados, sintomáticos: a construção de modelos de personalidade narcísica, soluções adictivas como a dependência de drogas ou de medicamentos, alcoolismo, bulimia”, e um ataque permanente ao objeto e, portanto, ao próprio ego. Todo desligamento enfraquece o investimento libidinal erótico liberando, em conseqüência, investimentos destrutivos. As soluções adictivas apontam para uma dependência de próteses que materializem ilusoriamente ou alucinem o objeto ou partes dele.

Freud enfatiza que o melancólico se apropria do objeto, erigindo-o no próprio ego, para desse modo não correr o risco de esvaziar-se de seu conteúdo ou forma. Ao mesmo tempo, o ódio instalado pela sua perda, invade o sujeito, e o superego se constitui abarcando-o e proferindo ataques ao ego. A sombra do objeto recai sobre o ego. Perpetua-se uma ligação ambivalente e sádica que gera um ciclo vicioso culposo.

No melancólico fracassa a conservação do objeto no seio do eu. Fracassa também qualquer possibilidade de processamento e elaboração da ambivalência afetiva originária. O ódio predomina e se transforma numa arma suicida.

Por outro lado, o luto pressupõe o abandono de uma posição aderida ao objeto e identificada com ele. O objeto é abandonado e substituido, e isso significa dizer que o objeto é reconhecido como incompleto, portador de falhas. Se o luto é suportável, salvaguarda o contato com a realidade, e mais do que isso, sustenta o sujeito num lugar que o mantém (durante o processo) desembaraçado de inibições, sejam elas corporais, psíquicas ou relacionais.

A elaboração do luto traz um ganho narcísico, nas palavras de FREUD. Uma vez rompido o vínculo com o objeto aniquilado, a realidade acaba por conceder ao enlutado a vantagem de permanecer vivo.

Como se abandona o objeto perdido? Em que lugar um pai morto pode ficar, permanecer?

Renata Udler CROMBERG (2002/2004), em seu artigo, fala da recuperação de algo vivo, como imagem, traço de memória sensorial e perceptivo. Considera que o legado de um pai fecundo é uma presença interna, apropriada pelo filho. “É preciso, sim, assassinar o pai na fantasia para poder aceitar a sua morte. Assassinar o excesso de pai, devorar e mastigar o corpo imaginário do pai idealizado.” Esse movimento traduz um operação psíquica, segundo CROMBERG, “necessária para que se tome para si o que antes era atribuído ao pai:D a função de abertura e acesso a erogeneidade, constantemente presente e renovada.”

A característica definidora da posição melancólica é a impossibilidade permanente do sujeito de fazer o luto. O sujeito insiste por manter algo de um ideal no interior do eu. A depressão surge da falta de ideais, e na tentativa do sujeito ser seu próprio ideal, ele fracassa. E desse fracasso a depressão se alimenta e cresce.

Necessária como caminho para uma introspecção que dá corpo ao ego, mas também, perversa e desvitalizadora, a depressão tem muitas caras.

Mas a melancolia é, de longe, a cara mais feia e cruel da depressão.

O conto: A Terceira Margem do Rio (Guimarães Rosa)

Certa de que uma obra de arte pode suscitar diversas e amplas leituras e interpretações, pela própria grandiosidade que abriga em si, faço uma abordagem psicanalítica do conto de Guimarães Rosa, ciente de que se trata apenas de um viés, dentre um universo de abordagens possíveis.

O conto me proporcionou a oportunidade de exercitar, a partir de uma visão muito pessoal, a re-significação de leituras, discussões e reflexões sobre as depressões.

Escolhi a “A terceira margem do rio”, que ao me tocar profundamente, pareceu conversar com as idéias e considerações sobre a melancolia, “injetando na veia”( como toda grande obra) aquela substância amarga e fria que percorre o corpo de um enlutado, pela perda do objeto amado.

Narrado em primeira pessoa, descreve, em poucas páginas e com uma intensidade impressionante, a partida de um homem, pai de família, que abandona tudo para morar dentro de uma canoa, no meio do rio.

Sob a perspectiva do filho, o pai torna-se ausência e presença, locado em um universo indeterminado e sem possibilidade de significação, em águas turvas, na “terceira margem” do rio.
O conto traz a idéia da existência de um lugar em que movimento e estagnação coexistem: a canoa se embala sobre águas paradas.

Lugar sem nome. Espaço no qual fica aprisionado o depressivo: um espaço psíquico esvaziado, destacado do entorno, solitário, que impede um deslocamento.

A tentativa angustiada de contato do filho-narrador com o pai percorre o conto inteiro, como se houvesse, a partir de sua partida, uma intensificação da ligação com ele.

A terceira margem nos remete a um espaço que é o avesso do que se delimita ou se conhece. Toda a subjetividade é impressa nas percepções do personagem- narrador, que pensa o pai dentro da canoa, no meio do rio.

Identificado maciçamente com ele, o filho fica preso de uma culpa que o leva a desejar tomar o seu lugar.

Homens lançados à margem de qualquer possibilidade, pai e filho se demoram e se encontram e desencontram, imaginariamente, no meio do rio.

Metáfora da morte, a terceira margem é lugar nenhum; é ausência e desamor. O pai é o meio do rio, de águas mais profundas, inacessível ao olhar, frio.

O filho é culpa, abandono de si, presa da angústia e do desinvestimento do pai.

Morrem pai e filho.

Pai morto…mãe morta… Uma passagem do texto de Green (1988) descreve o que pode ser a tormenta do sujeito, cujo objeto de amor (uma mãe enlutada), está morto e perdido para ele:
“…Presente morta, mas assim mesmo presente. O sujeito pode cuidar dela , tentar acordá-la, animá-la, curá-la. Mas se, em contrapartida, curada, ela acorda, se amina e vive, o sujeito a perde também, pois ela o abandona para cuidar de suas ocupações e investir outros objetos. De forma que lidamos com um sujeito preso entre duas perdas: a morte na presença ou a ausência na vida. Disto decorre a extrema ambivalência quanto ao desejo de devolver a vida à mãe. ”

Passagens

“Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente- minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.”

Ausência sentida, silêncio e ruído, o pai se retira desde sempre. Não entra em cena, não “faz liga”, não ralha e não rege, não participa, não se envolve.
Pai que nunca esteve, passa a habitar um imaginário pobre de referências, escasso de fantasias.

“Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo- a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.”
O desligamento se anuncia. O deslizar da canoa prenuncia o distanciamento inevitável e a ausência.
Pai que se torna figura fugidia, distanciada de uma realidade compartilhada, um apêndice, uma ferida aberta.

“Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava aquela invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais.”
Presença ausente, o pai vira um fantasma. Inaugura um sentimento de abandono; o inconformismo invade o filho, instala a necessidade de achar um sentido para o que não se explica. O vínculo atormenta, vínculo com aquele que parte, desaparece e não volta.
Separar-se do pai vira uma tarefa impossível.

“Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o que comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora.”
Alimento que aprisiona porque perpetua a vida, fugidia, do objeto. Vida nenhuma, cercada de uma atenção suspensa, alerta, esperançosa. O filho conserva e preserva a presença ausente do pai.

“Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou nem em chão nem capim. …”
O pai passa a não pertencer a lugar nenhum, despoja-se da realidade concreta e se despede do viver.
Corta os laços, como quem morre, ou pula num abismo, que é um fundo insondável.

“…não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e , se , por pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos”
Angústia e dor. Ferida por não recuperar o que não se dá por perdido, ou o que não se quer perder. Marca traumática de uma perda insuportável: separação “à fórceps”, “arrancamento”.

“…se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não encontrável?”
A tormenta de estar perto e, ao mesmo tempo, impedido de estar junto, é um vínculo mortífero.
O desejo de afastamento e o ódio se transformam em uma espera passiva, desejosa do movimento alheio, de aproximação, que nunca acontece.

“…eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei- na vagação, no rio, no ermo- sem dar razão de seu feito.”
Culpa e resignação.
O sujeito justifica seu aprisionamento, adere ao outro, camuflagem de si mesmo. Cuida deste que é o outro em si mesmo.

“Sou homem de tristes palavras. De que era que tinha tanta, tanta culpa? Se meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio- pondo perpétuo. Eu sofria já o começo da velhice- esta vida era só o demoramento.”
O tempo quase para, mas segue passando ao largo da vida. Espera eterna, sem movimento.
Pai e filho, estagnados em uma união de morte. Ligação e desligamento…

“Mas, então, ao menos, que , no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro- o rio.”
Desejo louco de substituir o pai, traga-lo para o fundo da alma e transformar-se nele.
Melancolicamente , afogar-se nas águas turvas e confundir-se nelas.

Bibliografia:

CROMBERG, Renata Udler. Fedida e o erotismo da palavra dos começos: Uma homenagem afetiva. Revista Percurso (n.31/32), 2003/ 2004
DELOUYA, Daniel= Depressão. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001. (Coleção clínica psicanalítica.)
EDLER, Sandra. Luto e Melancolia: à sombra do espetáculo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. (Para ler Freud)
FEDIDA, Pierre. Dos benefícios da Depressão: elogio da psicoterapia- São Paulo; Escuta, 2002
____________. Depressão – São Paulo; Ed. Escuta; 1999
FLORENCE, Jean. Identificações, 1984
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. 1917. vol. 14
_____________. O ego e o id. 1923. vol. 19
GREEN, André. Narcisismo de Vida- narcisismo de morte. Capítulo 6: “A mãe morta”, 1988
KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão: atualidade das depressões. Capítulo 9: Ceder em seu desejo: o vazio depressivo. São Paulo: Boitempo, 2009
KRISTEVA, Julia. Sol Negro: depressão e melancolia. Rio de Janeiro: Rocco, 1989
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HORSTEIN, Luis. As depressões. Afetos e humores do viver- São Paulo; Via Lettera: Centro de Estudos Psicanalíticos, 2008.
ROSA, João Guimarães. ”A Terceira Margem do Rio” in Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1985.
Sendik, Susan Masijah. Fora de Si: uma relação de dependência e o prejuízo na formação simbólica. Monografia, 2009
VILUTIS, Isabel D. Mainetti. Culpa e Identificação na Clínica da Melancolia-comentário sobre o texto “luto e melancolia” de Freud
WINNICCOT, Donald. O valor da depressão. In: Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

Do olhar à escuta: a descoberta da importância da fala nos primórdios da Psicanálise

por Cláudia de Almeida Gallo

“Houve um tempo na Grécia arcaica em que as palavras faziam parte do mundo das coisas e dos acontecimentos. A palavra, juntamente com as condições de sua enunciação, não valia apenas por seu sentido manifesto, mas como signo a ser decifrado. Através de tal processo, um outro sentido, oculto e misterioso, emergia numa profusão interminável de decifrações. Essa era a palavra do aedo, poeta-profeta, palavra portadora da alétheia, da verdade. O psicanalista seria aquele que sabe que o relato do paciente é um enigma a ser decifrado. E, no enigma, verdade e engano são complementares, e não excludentes.”(L.A. Garcia-Roza)

Depois de tanto já ter sido dito e escrito sobre a cura pela fala, ou “talking cure”, o que demonstra a dimensão da importância desta descoberta, parece que nada mais restaria a ser dito sobre este assunto. Entretanto, ainda assim permanece o impacto em cada um que lê ou relê os primeiros textos freudianos.

Acompanhamos, já à distância, a genialidade e ousadia de Freud e entendemos que, por mais antiga que seja sua descoberta, será sempre na perspectiva da invenção que precisamos situá-la. E é neste sentido que toda nova mirada a estes textos se justifica, para apoiar a invenção da clínica nossa de cada dia.

Neste trabalho pretendo, destacando as passagens do próprio corpo dos textos freudianos do final dos oitocentos, refazer o caminho através do qual pouco a pouco se revelou a Freud sua própria descoberta – invenção.

Esses textos, escritos a partir de 1893 até 1895, situam-se numa época anterior ao chamado nascimento da Psicanálise, cujo marco considera-se a “Interpretação dos Sonhos”, texto de 1900. Contudo, embora ainda de forma embrionária, neles encontramos o esboço das principais noções e conceitos que futuramente constituíram-se nos pilares do novo saber. Dentre eles, como marco revolucionário, podemos destacar o lugar da fala livre e sua correspondente, a escuta.

Um pouco de história

No final do século XIX como uma crítica ao saber médico vigente à época, nasceu uma alternativa. Frente às limitações encontradas no tratamento de mulheres, com sintomas físicos não explicados por causas orgânicas, e impelido por enorme curiosidade e inclinação investigativa, Freud empreendeu uma longa jornada na busca de respostas a este fenômeno, levando-o a construir a partir daí um arcabouço teórico e técnico de inestimável valor, a Psicanálise.

As histéricas intrigavam os médicos com sua profusão de sintomas impossíveis de serem tratados com os métodos correntes, não havia naquela altura compreensão da especificidade desse quadro clínico e tampouco tratamento específico. A dor histérica e seus sofrimentos eram acompanhados segundo a prática clínica vigente, a observação dos fenômenos e a busca de sua resolução. A ênfase situava-se no olhar.

Porém, na França iniciava-se um novo modo de tratamento, idealizado por Charcot, que pretendia curá-las utilizando o método da hipnose. Este consistia em, induzir a paciente a um estado semiconsciente, no qual a mesma era estimulada a recordar lembranças passadas e extravasar seus sentimentos relativos às mesmas, os quais até então estariam represados. A seguir, retornando à consciência, os sintomas desapareceriam.

Interessado pelo assunto Freud já o estudava. Sabendo dos trabalhos de Charcot decidiu então, aprimorar seus estudos com ele e durante algum tempo utilizou a técnica da hipnose com os mesmos objetivos, a recordação do trauma e a derivação por reação, desbloqueio da estase pulsional através de uma reação emocional.

Entretanto, Freud observava que embora o tratamento suprimisse o sintoma, este desaparecimento era temporário, retornando em seguida de outro modo. Fez então, a seguinte suposição: embora fosse importante que a paciente recordasse seu momento traumático, esta lembrança deveria acontecer através de um trabalho consciente e voluntário de dominar a crítica e a censura e não mais sob estado hipnótico.

A partir de então, alterou-se a prática clínica e iniciou-se a construção de um novo método, no qual a ênfase deslocava-se progressivamente para a descoberta dos mecanismos que provocavam a dor histérica, e sua compreensão vinha através da escuta do que a paciente dizia em estado de vigília.

Abandonada, ainda que não de todo, a hipnose, Freud foi à busca de novas técnicas para estimular a fala. Iniciou com o apremio, insistência, ou em suas palavras “coerção psíquica”, para que a paciente revelasse tudo o que estivesse pensando, sem censurar, ainda que os conteúdos parecessem irrelevantes, inconvenientes, ilógicos. Serviu-se também, de um pequeno artifício, ligeira pressão na testa da paciente acompanhada da afirmação de que lhe ocorreria uma lembrança qualquer ou mesmo uma imagem, e se comprometia a delas dar conta, quaisquer que fossem.

Com o passar do tempo, ele foi abandonando todas estas técnicas à medida que suas teorias se desenvolviam. O aprofundamento da compreensão acerca da função das defesas, da resistência oferecida ao processo de cura e sua relação com a figura do médico, a transferência, o levaram pouco a pouco a enfatizar o trato destas questões, interpretando-as, em um processo de esclarecimento e dispensando estes artifícios.

Mas, naquela altura, eram essas intervenções que constituíam a base técnica do novo método, chamado análise catártica.

A fala livre ganhando seu lugar

Em seu texto “O Mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos”, conhecido como “Comunicações Preliminares”, escrito em1893, em parceria com Josef Breuer, Freud afirma explicitamente ainda não haver encontrado as causas internas da histeria, apenas se aproximado dos mecanismos dos sintomas histéricos. A busca dirigia-se para a identificação da relação causal entre o sintoma aparente e o trauma vivido que o justificaria, este atuaria como causa inicial, do mesmo modo como uma antiga dor nos leva às lágrimas. “Assim, pois, as histéricas sofrem principalmente de reminiscências”

Buscar a recordação do trauma e sua expressão emocional tornou-se o objetivo do tratamento. Em outro trecho do mesmo texto, ele diz: “… os diferentes sintomas histéricos desapareciam imediata e definitivamente quando se conseguia despertar com toda clareza a lembrança do processo provocador e com ele o afeto concomitante, e descrevia a paciente, com o maior detalhe possível, dito processo, dando expressão verbal ao afeto”.

Entretanto o que era mais evidenciado, na época, como causa dos sofrimentos, era principalmente a perda ou debilitação dos afetos, sobretudo quando o sujeito não reagia aos fatos, pois uma vez ocorrida alguma reação grande parte do afeto desapareceria, pois seria devidamente descarregado. A recordação desprovida de afeto carecia quase sempre de eficácia. Porém, ele não deixa de enfatizar: a lembrança de uma ofensa respondida ainda que somente com palavras, produz efeito muito diverso daquela tolerada sem protesto. A fala estava definitivamente em questão.

O homem encontra na palavra um subproduto do ato, podendo substituí-lo por ela, através da qual o afeto pode ser descarregado. Muitas vezes a própria palavra é o meio mais adequado para aliviar o peso do trauma. Quando não se produz nenhuma reação, seja por atos ou palavras, a lembrança do fato conserva a intensidade afetiva e sua força patogênica.

Porém, a ab-reação não era a única forma de anular os efeitos traumáticos de uma determinada experiência. A recordação entra no complexo associativo do sujeito, podendo ser corrigida por outras representações, contribuindo para reduzir os efeitos negativos no próprio indivíduo. Com o passar do tempo, as lembranças sofreriam uma espécie de desgaste e perderiam a capacidade de produzir enfermidade. Quando os dois meios de descarga encontram-se impedidos, tanto a reação por ato quanto por elaboração associativa, as marcas permanecem intactas e disponíveis para vir à tona ao encontrar uma condição que as favoreça.

O método desenvolvido por Freud, naquela altura, atuava curativamente anulando a eficácia da representação não descarregada inicialmente, dando saída, por meio da expressão verbal, ao afeto correspondente, que havia permanecido estancado e levando a correção associativa, por meio de sua atração à consciência normal ou de sua supressão por sugestão.

A relação entre recordar e exprimir, verbal e emocionalmente, experiências traumáticas vividas no passado, permaneceu na linha de frente da compreensão freudiana para o tratamento da histeria. Seus casos clínicos, descritos nessa época, são prova viva desta aposta teórico-clínica, como no exemplo da Srta. Elizabeth Von R.

Buscando compreender a enfermidade de sua paciente, Freud investigava arduamente as lembranças relativas à época do surgimento de seus sintomas e as manifestações contemporâneas, com o objetivo de relacioná-las entre si encontrando o fio que as ligava, incentivando sua expressão. Ele percebia a existência de um conflito entre forças opostas e afirmava que: “… o resultado deste conflito era a expulsão da representação erótica da associação e o afeto concomitante era utilizado para intensificar ou renovar uma dor psíquica ocorrida simultaneamente ou pouco antes”.

A paciente era convidada a falar e:… “quando emudecia, porém manifestava continuar seguindo dores, podia ter a segurança de que não me havia dito tudo e a instava a continuar sua ‘confissão’ até que a dor desaparecia”. Ficava cada vez mais clara, a compreensão de que as dores eram uma manifestação desviada, deslocada dos afetos aos quais corresponderiam, e também se tornava cada vez mais explícita, a relação entre o ato de fala e a remissão das dores. As lembranças esquecidas deveriam ser novamente incluídas nas associações.

Porém, o quê deveria ser recordado ainda era uma questão para Freud. Ele sabia que se tratava de assuntos referentes à sexualidade, vividos na primeira infância, mas relacionava-os a traumas reais, seduções sofridas por suas pacientes, e em última análise perpetradas por seus pais, pois as lembranças a isso remetiam.

Somente em setembro de 1897, quatro anos depois, em uma carta a Fliess, ele abandonou a tese que ficaria conhecida como “Teoria da sedução”, finalmente admitindo, em sua famosa frase “… não acredito mais na minha neurótica.” A partir daí, abriu-se o caminho para dar à fantasia o estatuto de realidade, entretanto muito caminho ainda teria que ser percorrido.

Em 1895, no texto “Psicoterapia da Histeria” Freud deu continuidade às suas investigações sobre o tema da histeria, desenvolvendo-o um pouco mais. Agora escrevendo sozinho, sem mais a presença de Breuer, assumiu algumas mudanças de posição. Ao mesmo tempo em que abandonava certas linhas de entendimento do fenômeno, importantes inovações eram afirmadas, como por exemplo: o desvelamento da existência de processos defensivos e sua relação com as representações de natureza penosa; a descrição do processo de repulsa pelo eu destas representações e suas motivações; a compreensão dos fenômenos transferenciais e a respectiva resistência e tantos outros caminhos que este texto nos convida a seguir.

Contudo, para manter o objetivo deste trabalho, devo abdicar de seguir estas atraentes trilhas e destacar o primeiro parágrafo do texto onde ele retoma a idéia já apresentada em 1893, reafirmando a importância da expressão verbal dos afetos no tratamento da histeria e sua relação com a recuperação da memória esquecida.

Em outra passagem do referido texto, ao esclarecer as vantagens do procedimento da pressão na fronte, ele se refere a retirar as atenções da paciente de seus assuntos e reflexões conscientes para conduzi-la ao encontro das representações patógenas. Estas, supostamente esquecidas, se encontrariam sempre “por perto” e poderiam ser encontradas por meio de associações acessíveis, necessitando apenas superar um certo obstáculo, a vontade do sujeito.

Na medida em que as representações patógenas raramente encontravam-se próximas da superfície, o que costumava emergir eram elementos intermediários, entre o ponto de partida e a representação buscada, ou seja, elos de uma nova série de pensamentos e lembranças. O que se tornava visível era o caminho que conduzia às representações esquecidas e que indicava o sentido em que a investigação deveria continuar.

Esta idéia de elos, de uma corrente, nos faz pensar que se tratava de restabelecer a cadeia associativa do sujeito, ligando as representações em algum momento separadas. Seguindo este fio, podemos encontrar indícios da percepção de Freud da importância não apenas da expressão verbal, mas também dos processos de produção da fala, ou seja, como é produzido o que será dito, os caminhos percorridos até que se dê a manifestação através da fala. Os obstáculos criados pela resistência e as trilhas de facilitação encontradas.

Considerações finais

Algum tempo depois, Freud abandonou o método catártico, não buscava mais a rememoração de fatos traumáticos específicos, não acreditava mais em vivências únicas que determinavam o quadro histérico. Portanto, não buscava uma manifestação emocional relacionada exclusivamente a elas.

Por outro lado, manteve sua convicção na etiologia sexual das neuroses e no fato de que ao falar revelava-se, ou dito de outro modo, emergia um sujeito, com toda a riqueza de suas vivências, suas fantasias, seus conflitos, seus impasses, seus sonhos, esperanças e desejos. Vencer as resistências do recalque e, suprimir as lacunas da memória permaneceu durante mais algum tempo, o objetivo de seu trabalho. A comunicação oral tornou-se a partir de então, e para sempre, a modalidade de trabalho da nova ciência, e a fala a matéria prima com a qual lida o psicanalista.

Instituída a técnica da associação livre, tarefa que cabe ao paciente, criou-se sua correspondente no analista, a atenção flutuante. Nesta posição, este não deve selecionar os conteúdos trazidos à tona pelo paciente, não deve esperar ou buscar coerência lógica no discurso, sobretudo deve ater-se ao fato de que o que está em cena é outra lógica, aquela produzida pelo inconsciente e que funciona por modalidades especiais de formação e expressão.

Finalmente, através destes textos, pudemos acompanhar a passagem progressiva da fala em estado hipnótico para o exercício voluntário e consciente da mesma, embora sabendo que esta é orientada pelas determinações inconscientes. E a mudança, no que diz respeito à posição do analista, do olhar dirigido aos fenômenos observáveis no paciente à escuta dos seus relatos, incluídos aqui suas brechas e falhas.

É no âmbito da linguagem, desde o início que Freud se move. É seu ponto de partida teórico e o lugar a partir do qual localiza a emergência do humano. Somos humanos por nascer no registro da linguagem e sujeitos por nele permanecer.

Referências bibliográficas:

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Freud, Sigmund (1895) “La Histeria” cap.3. ‘Psicoterapia de La Histeria’ in Obras Completas vol.10. Buenos Aires. Ed. Santiago Rueda.

Freud, Sigmund (1894) “Las Neuropsicosis de defensa” in Obras Completas vol.11. Buenos Aires. Ed. Santiago Rueda.

Garcia-Roza, Luis Alfredo (1998) “Palavra e verdade: na filosofia antiga e na psicanálise”. Rio de Janeiro. Ed. Jorge Zahar.

Gay, Peter (1989) “Freud: uma vida para o nosso tempo”. São Paulo. Ed. Companhia das Letras.

Sobre a habilidade de transitar pelas fronteiras

por Tânia Corghi Veríssimo

Quem deteria a patente disso que se faz absolutamente universal como categoria, indiscutivelmente, singular em seus modos de expressão e recebe o nome de sofrimento?

Sofrimentos psíquicos – As lutas científicas da psicanálise e da psiquiatria pela nomeação, diagnóstico e tratamento, livro derivado da dissertação de mestrado de Julia Catani, é uma obra que, ao apresentar seu título, enuncia para o leitor uma odisseia a ser empreendida, antes mesmo de ele folhear suas primeiras páginas. Explicativo tanto quanto à sua proposta de abordagem temática e descritivo como ao seu objetivo de pesquisa, o título, por si só instigante, funciona como um convite à adoção de uma postura analítica para quem nele se debruçar, naquilo que se refere à decomposição das partes de um texto e de importantes palavras ali encadeadas.

Na cadeia de palavras entoadas pela autora para intitular seu trabalho, deparamos, primeiramente, com a terminologia sofrimentos psíquicos, substantivo flexionado no plural. Ao longo da leitura, percebe-se que essa escolha pelo plural não atende a um mero formato gráfico e se constitui como importante diretriz para uma pesquisa que explora a pluralidade de expressões dos sujeitos em sofrimento ante o desafio da nomeação, diagnóstico e tratamento oferecidos pelas ciências.

No prefácio, Dunker pontua o sofrimento como “categoria que não é nem psicanalítica nem psiquiátrica, mas universal” (p. 13), afirmando-o em seu caráter transcendente, não circunscrito em bordas de um único campo ou em um único discurso. Foucault (1996) nos lembra que: Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder. Nisto não há nada de espantoso, visto que o discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é também, aquilo que é o objeto do desejo;

[…] a história não cessa de nos ensinar, o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual queremos nos apoderar, permitir a transubstanciação e fazer do pão um corpo. (p. 10-11)

Uma vez no campo do discurso, abrem-se questões em torno de um panorama não mais universal. A palavra lutas, encontrada no título, elimina a noção de uma suposta neutralidade e enuncia a busca das ciências por uma hegemonia discursiva. Quem deteria a patente disso que se faz absolutamente universal como categoria, indiscutivelmente, singular em seus modos de expressão e recebe o nome de sofrimento?

Na apresentação, o leitor encontra tanto como objetivo da pesquisa “(…) a descrição e a análise dos conceitos de Transtornos Somatoformes (TS) na perspectiva psiquiátrica e psicanalítica e para isto realiza um mapeamento e uma discussão da temática de modo histórico e nos diferentes campos do conhecimento” (p.17) quanto com a fronteira a partir da qual a autora situou as lutas científicas da psiquiatria e psicanálise, ou seja, a investigação das proximidades existentes entre o conceito de histeria na obra freudiana e o conceito de TS, no Manual Diagnóstico e Estatístico de transtornos mentais (DSM) e na Classificação Internacional de Doenças (CID) em suas diferentes versões. A obra introduz cruzamentos entre discursos e tempos históricos, abrindo oportunidade para boas reflexões. De um lado a histeria, diagnóstico bastante explorado, de caráter fundante para a psicanálise, desde o século XIX alvo das pesquisas de Freud e Charcot; do outro os transtornos somatoformes, uma nomeação recente oferecida pela psiquiatria em versões da CID e do DSM reformuladas ao longo do século XX e XXI.

Ao optar por deslindar uma fronteira entre psiquiatria e psicanálise, o trabalho revela sua complexidade e se coaduna a uma definição de Martins (2014), quando discute aspectos da multiplicidade da fronteira:

(…) lugar revelador do desencontro de temporalidades históricas, aquilo que configura o que é essencialmente o lugar de alteridade. A fronteira é o lugar da liminaridade, da indefinição e do conflito. Tem sido o lugar da busca desenfreada de oportunidades. É um lugar privilegiado de observação sociológica e dos conflitos e dificuldades próprios da constituição do humano no encontro de sociedades que vivem no seu limite e no seu limiar da história. (p.10)

O livro divide-se em oito capítulos. O primeiro refere-se a uma introdução dos elementos de um mapa do sofrimento psíquico nos séculos XX e XXI, perpassando a histeria e os transtornos somatoformes. O segundo e o terceiro entoam uma discussão sobre o diagnóstico da histeria em psicanálise e questão do diagnóstico em psiquiatria, respectivamente. O quarto e o quinto tratam dos transtornos somatoformes nas diferentes versões da CID e do DSM. O sexto discute a identificação do sofrimento psíquico no campo científico, enquanto o sétimo, último capítulo antes das considerações finais, traz como título uma pergunta: “A histeria e os transtornos somatoformes: nomes diversos para a compreensão do mesmo sofrimento psíquico?”.

O respeito à historicidade serviu como ponto de partida essencial para a formulação dessa questão e a abertura de tantas outras na obra. A partir de um resgate criterioso, primeiramente da histeria em Freud, depois da classe de transtornos somatoformes na CID e no DSM, das primeiras às últimas reformulações desses manuais, Catani constatou a existência de uma base comum entre os dois diagnósticos, concluindo que o conceito psiquiátrico de transtornos somatoformes teria sua origem calcada na histeria, tal como concebida pela psicanálise. A análise crítica do percurso do DSM revelou que, após um período de prevalência, houve um distanciamento significativo da participação da psicanálise e da psicodinâmica na compreensão e definição dos transtornos somatoformes, culminando em radicalidades e efeitos. Enquanto até o DSM-II de 1968 a histeria se fazia como grande representante diagnóstica, no DSM-III de 1980, versão que se pretendeu ateórica, o termo fora completamente eliminado e substituído pela definição sintoma conversivo, por ser considerado mais preciso pelos autores do manual (APA, 1980). 154 O DSM-IV (1994), configurou-se como uma versão extremamente ampliada que apresenta 297 transtornos em 800 páginas. Nela, o nome neurose fora completamente abolido, enquanto a histeria foi diluída entre os nomes transtornos somatoformes, transtornos factícios e transtorno de personalidade histriônica. O DSM-V (2013), por sua vez, expôs uma alteração da nomenclatura de transtornos somatoformes para sintomas somáticos e transtornos relacionados, com o argumento de que a antiga terminologia se mostrava confusa pela não separação mente e corpo.

O acompanhamento das reformulações dos manuais, por conseguinte, evidenciou uma proliferação da gama de nomes/diagnósticos oferecidos para a descrição dos sofrimentos apresentados pelos pacientes. Sobre essa tendência, a autora problematizou: As classificações, ao longo da história dos acometimentos mentais, permitem uma ordenação e um melhor entendimento para tratar os pacientes. Em qualquer lugar do mundo é possível, a partir do código do diagnóstico, estabelecer um tratamento. Em contrapartida, os esforços pela objetivação e quantificação do mal-estar produzem um número cada vez maior de fragmentações, e o resultado destes empenhos podem ser observados nas edições da CID e do DSM e em outros textos da literatura especializada. A lógica que preside as classificações leva os especialistas a criarem novas categorias quando se considera que as anteriores não atendem às necessidades apresentadas pelos pacientes. (p.18) Posteriormente, indagou: “Assim, diante das constatações que emergiram na pesquisa, é quase como se fosse permitido perguntar: se a medicina desconhece a causa, o problema está na saúde mental do doente?” (p. 185).

Interessante notar que, mesmo em tempos de fragmentações diagnósticas, Catani manteve viva sua postura analítica, estabelecendo um belo e detalhado percurso etimológico que poderia ser comparado ao empreendido por Freud no Unheimlich de 1919, em seu caminho pelas filigranas e contradições existentes numa zona de complexidade discursiva. A autora perscrutou os manuais pari passu, questionando cada palavra usada para nomear os transtornos somatoformes e seu suposto distanciamento da histeria. Deparou-se com um panorama formado por lacunas, escolhas por certas nomenclaturas, permanências, alterações, desaparecimentos de termos com e sem explicações, angariando argumentos fundamentados na história para abrir uma discussão pertinente.

No capítulo seis, encontra-se uma importante reflexão sobre a nomeação, em sua função e em seus paradoxos nessa busca pela classificação do sofrimento na CID e no DSM. A nomeação do sofrimento é entendida como fundamental, gesto apaziguador da angústia diante de um evento de que pouco se sabe, motor da ciência diante dos fenômenos a serem pesquisados. No entanto, segundo Catani, a busca desenfreada por definição, por nomes que chegam desacompanhados de sua história e de qualquer sentido, tão sabidos e decorados pelos profissionais, acaba por produzir efeitos iatrogênicos ao tratamento. Nessa discussão, reconhece-se a utilidade do DSM como instrumento eficaz no campo científico, empregado por diversos profissionais e em áreas distintas para identificar o sofrimento mental, mas problematiza-se seu uso. A autora parte da premissa de que “para pensar é preciso classificar e para classificar é preciso pensar” (p 152) e em sua pesquisa constata que diante da urgência em nomear o sofrimento psíquico, essa lógica não se sustenta. O pensar e o classificar se desvinculam, profissionais se mostram cada vez menos dispostos a escutar os pacientes, resultando no empobrecimento da escuta clínica. Nesse cenário, ocorre que muitos pacientes não melhoram diante dos diversos tratamentos ofertados; pelo contrário, produzem novas manifestações e maneiras de expressarem seus conflitos.

O reconhecimento do classificar e do pensar como ações indissociáveis na prática clínica e nesta pesquisa foi justamente o que permitiu à autora colocar em xeque o efetivo desaparecimento da histeria dos manuais. Ela constatou que, mesmo após o rechaço dessa terminologia desde o DSM-III (1980), o cerne da definição freudiana de histeria, a saber, o que não pode ser verbalizado por meio das palavras é investido no corpo, ainda vigora e constitui a categoria de transtornos somatoformes. Ao pensar a história das classificações, concluiu que histeria e transtornos somatoformes, por mais que recebam novas nomenclaturas pelos manuais, ainda são categorias muito mais próximas do que os profissionais geralmente percebem e admitem. Por outro lado, identificou uma diferença fundamental entre ambos os diagnósticos, considerando que os pacientes com transtornos somatoformes guardam semelhanças com a histeria na prática, em suas maneiras de operar; apresentam algum tipo de funcionamento psíquico similar ao desse quadro, mas, parecem padecer de uma constituição subjetiva menos elaborada. Entende-se que nessa condição crítica e, somente nessa condição, seria possível para a autora traçar paralelos profícuos entre histeria e transtornos somatoformes e concluir que:

“(…) a histeria e os transtornos somatoformes são sim iguais, mas também são, sim, diferentes, apoiando-se no dito de que ambos consistiriam em “…uma doença que não o é embora seja” (p.190).

A proposta de inclinar-se sobre os casos de transtornos somatoformes em seu trabalho no Ambulatório de Transtornos Somatoformes (Soma) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-HCFMUSP) constitui mais um aspecto importante desta pesquisa, revelador da habilidade de Catani em transitar pelas fronteiras. No contexto de corrida por classificações, dissociação entre o pensar e o classificar, nomeações desconectadas de historicidade, surgem os transtornos somatoformes, rebento rebelde dessa trama discursiva, diagnóstico que introduz paradoxos. A começar pela sua configuração, um compilado de transtornos – transtorno de somatização, transtorno somatoforme indiferenciado, transtorno conversivo, transtorno doloroso, transtorno disfórmico corporal e transtorno somatoforme sem outra especificação (CID 1992) – em um mapa de tantas nomenclaturas que, até então, não deram aos profissionais a condição de estabelecer alguma bússola para a indicação de um tratamento preciso aos seus pacientes.

No capítulo cinco, Catani aponta para algumas divergências na definição do conceito de transtornos somatoformes, inclusive entre a CID e o DSM, e pontua que, do ponto de vista histórico, muitos diagnósticos, incoerentes e sobrepostos foram empregados para identificar e diferenciar os transtornos somatoformes. Depois, os transtornos somatoformes pertencem a uma classificação diagnóstica que, ainda que composta por uma lista de critérios para sua confirmação, tem como ponto central a exclusão de outros quadros psiquiátricos ou médicos, tal como mencionado até o DSM-IV-R. A afirmação do diagnóstico se dá pela exclusão e revela um público errante e desviante, que traz contradições como a de não pertencer a um quadro para encontrar um lugar de pertença ou de não ter nome definido para ser nomeado. O livro mostra imprecisões de sujeitos que perambulam pelas diferentes especialidades médicas em busca de sentidos aos fenômenos de seus corpos e parecem endereçar, no mínimo, um duplo recado provocativo a quem ouve. Às ciências ávidas por nomenclaturas, cada vez mais empenhadas em controlar e quantificar o sofrimento, eis a rebeldia de quem se recusa ao encaixe nessa política. Aos profissionais que os recebem no cotidiano do ambulatório, está lançado o desafio da escuta e da sustentação do próprio não saber diante do que se revela, insistentemente, aquém das palavras.

Conclui-se que, mais do que tratar da complexidade do sofrimento humano, esse livro transmite a paixão pelo desconhecido, definida por Fédida como ingrediente fundamental da prática psicanalítica. Mas, a paixão, tal como o sofrimento, deve ser reconhecida em sua universalidade, transcendente ao terreno da psicanálise e a qualquer campo do saber, tornando essa obra muito bem-vinda a psicanalistas, psiquiatras, enfim, a todos os profissionais que mantêm vivo o interesse pelo enigma dos sofrimentos humanos e demonstram, sobretudo, aptidão por caminhar pelos confins da subjetividade.

Referências

Fédida, P. (1988) Clínica psicanalítica – Estudos. São Paulo: Ed. Escuta.

Foucault. M. (1996). A ordem do discurso. São Paulo: Ed. Loyola.

Martins, J. S de Souza. (2014). Fronteira: a degradação do outro nos confins

O Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças

por Ester Alves

Este artigo foi publicado no facebook da Rede de Atendimento Psicanalítico em 2013

Revi um filme chamado “Brilho eterno de uma mente sem lembrança” – Eternal sunshine of the spotless mind, no original. Trata-se da história de um casal diante da separação e do amor, não necessariamente nesta ordem, ou, mais precisamente, na familiar desordem destas experiências que nunca perdem seu caráter de estranheza.

O filme tem muitas coisas interessantes, tais como: 1) a ideia de que experiências não são extirpáveis da mente humana, o que leva a concluir que, assim como na natureza, no psiquismo nada se cria, nada se destrói e tudo se transforma; 2) tal transformação demanda trabalho psíquico; 3) o tecido da nossa história contém o outro em sua trama, o que não implica que este outro possa realizar o trabalho psíquico que compete a cada um de nós; 4) a história de uma pessoa, com seus altos e baixos, com seus inevitáveis altos e baixos, é o que lhe dá lastro, e ver-se sem ela é ficar sem referências, como num diário com páginas arrancadas.

Em psicanálise, a ideia de brilho associa-se à do objeto que envolve atração, que se torna desejável justamente porque brilha e, como tal, constitui-se em promessa de ser ou de trazer consigo aquilo que falta a alguém. Neste sentido, haveria um objeto (uma pessoa, por exemplo) que, com sua presença, traria completude à outrem – estamos próximos da concepção de “alma gêmea”. No entanto, as histórias assistidas (ou vividas) nos mostram que esse suposto encontro nirvânico não passa de combustível que nos coloca num incessante movimento de busca. Esperamos pela completude, mas não a encontramos, e justamente por isso, nos movimentamos.

A personagem do filme, diante da evidência da incompletude e da frustração, oferece o que me parece ser uma dica já sabida, insistentemente esquecida, que convém lembrar: no final do filme, ele nos diz “ok”.

Relatos Selvagens – A lógica das totalidades e sua relação com a violência

por Ester Alves

Este artigo aponta para o recrudescimento de processos constitutivos, especialmente os constituintes do narcisismo e do eu, como um dos elementos da violência.

Artigo publicado no facebook da Rede de Atendimento Psicanalítico no dia 30.05.2016

No texto “A Negação”, Freud aborda duas questões, basicamente: os processos de constituição psíquica e a negação do retorno do recalcado, por meio da qual, apesar de consciente, uma representação pode continuar sendo tomada como exterior ao eu. As duas questões trabalhadas neste texto apontam para o fato de que as impressões e representações que produzem prazer tendem a ser tomadas como próprias, e, ao longo do tempo, como pertencentes ao eu. As impressões e representações desprazerosas, por sua vez, são negadas e projetadas, de modo que, com o surgimento do eu, são tomadas como não pertencente a este, como estranhas e externas.

Noutro texto, chamado Psicologia das Massas e Análise do Eu, Freud faz uma série de apontamentos, dos quais vou destacar três. Um deles é que o líder é uma figura idealizada que suporta uma projeção do narcisismo perdido, da “’sua majestade’, o bebê”, que cada um de nós fora, outrora; outro apontamento é que qualquer elemento que não coincida com esta imagem narcísica é tomado como estranho e, em última instância, como rival; por último, destaca que o individual e o coletivo coincidem, logo, o narcisismo e seus mecanismos de preservação dizem respeito ao indivíduo e também às massas.

Ambos os textos, apontam para o que quero destacar: 1) que a constituição psíquica se dá num processo de separação entre “o joio e o trigo”, e que esta “separação”, na verdade, diz respeito à formação de totalidades (“bom” e “mau”, por exemplo); 2) que, sob a forma de narcisismo, essa separação “totalizadora” persiste, sendo que o que é diferente e indesejado, dado o desprazer que produz, tanto no nível individual quanto coletivo, tem como horizonte o expurgo, e um expurgo comum é o outro, nosso semelhante.

Tem um filme, que está em cartaz faz um tempo, que considero exemplar para evocar a questão da totalidade nas relações e seus efeitos violentos: chama-se “Relatos Selvagens”. O título provoca ao juntar elementos excludentes, dado que a linguagem retirou o homem de seu “estado de natureza”. Mas, penso, podemos tomar esta provocação como um apontamento da violência como manifestação de sérias dificuldades nos processos da linguagem, os quais, podemos dizer, são processos representacionais e associativos, por meio dos quais se constitui um lugar próprio no laço social.

Também quero destacar um recorte possível das situações de violência abordadas no filme: elas são disparadas na relação com um Outro que aparece como totalizante, deslegitimando ou impossibilitando a alguém uma inscrição que possua valor num certo laço. Este Outro é encarnado por figuras diversas, como os pais, o governante abusador, o Estado burocrático, o entorno social cínico e hipócrita, enfim, figuras presentes na vida de cada um de nós.

Mas, alguns relatos, além de destacar a violência e seus detonadores, deixam entrever sua transposição a uma outra coisa: um novo enlaçamento discursivo, uma recriação do laço, possibilidade para um indivíduo, ou para um grupo. Para quem estiver interessado por estes temas, indico a entrevista com Jacques Rancière, chamada “Como sair do ódio”, que está publicado na Boitempo.