Rede de Atendimento Psicanalítico convida à reflexão sobre Gênero e Infância

por Cláudia Arbex, Ilana Bernstein e Vanessa Chreim

No último dia 8 de novembro, a Rede de Atendimento Psicanalítico convidou o público para uma interlocução sobre gênero na clínica psicanalítica, especialmente com crianças. Vanessa Chreim apresentou um texto que foi comentado por Ilana Safro Berenstein e Claudia Arbex e, em seguida, houve espaço para um rico debate com os presentes.

Tratar desse tema é um grande desafio atualmente, considerando-se a intensa produção teórica em curso. Na ocasião, a proposta foi a de apresentar reflexões, partindo da experiência clínica e de suas interrogações. Enfatizou-se a compreensão das identidades de gênero como uma construção singular e subjetiva do sujeito, em seus aspectos conscientes e inconscientes, a partir de uma perspectiva não patologizante.

Retomando a declaração de Roudinesco de que não podemos tomar a obra freudiana como atemporal, as psicanalistas falaram sobre a importância de ter em vista o atravessamento histórico da construção do saber psicanalítico para podermos sustentar nosso pensamento teórico-clínico, revisitando criticamente as bases epistemológicas.

Uma das perguntas colocadas foi: de que modo a psicanálise pode contribuir para pensar este tema, que tem promovido encontros e desencontros entre as diferentes áreas do conhecimento?

Da sexualidade infantil perversa polimorfa ao entroncamento gênero-sexualidade, são inúmeros os conceitos e as articulações psicanalíticas que elucidam o lugar do gênero na constituição psíquica e na cultura.  É vasta a literatura que nos mostra o quão complexos são os processos de identificação, tanto em relação à variedade de objetos, quanto em relação à natureza desta (primária, secundaria, incorporadora, melancólica, histérica).

Nesse sentido, o evento abordou algumas considerações acerca da construção da identidade de gênero, que percorre diversas vias: intrasubjetiva, intersubjetiva e transubjetiva, de forma a conectar indissociavelmente o individual ao coletivo. Associado à densa bagagem cultural e narcísica dos pais, na maioria das vezes, o sexo se torna gênero e o pacote simbólico que acompanha essa passagem é incomensurável. A questão de gênero foi situada como uma elaboração que diz respeito a todos nós, a partir de um discurso social sobre o ser homem e ser mulher, em sua dimensão tanto cultural e coletiva, quanto particular, no que toca as vicissitudes da vida de cada pessoa.

Colocaram ainda outra interrogação: será que ainda faz sentido nos atermos a uma compreensão sobre a castração que se centra na diferença anatômica entre os sexos, concretamente?

Apoiadas em contribuições de Jean Clavreul (1990), enfatizaram que as consequências psíquicas da descoberta da diferença sexual dizem respeito a uma importante mudança de posição subjetiva quanto possibilidade de admitir a alteridade em diferentes aspectos : 1) A diferença de gerações 2) A diferença entre fantasia e realidade. 3) A diferença entre a sexualidade infantil e a adulta 4) A diferença do tempo da ingenuidade para o tempo da construção de conhecimento. 5) A alteridade presente em todos os relacionamentos, nos quais nunca é possível saber o que somos para o outro. 6) A alteridade em relação a si mesmo, aquilo que de si desconhece, o inconsciente. 7) A admissão da castração dos adultos (pai e mãe), no sentido de interditar um poder sem limites sobre o corpo e o psiquismo dos filhos.

Foi importante destacar as particularidades desta questão na clínica com crianças, que é diferente da do adulto. Apesar de se considerar que com estes últimos trabalhamos com os traços infantis, o período da infância é uma fase inicial de constituição do psiquismo, durante o qual a identificação primária tem um papel central a partir da relação especular da criança com o outro. O analista de crianças também as escuta levando em conta o colorido das teorias sexuais infantis, que ao longo da transição para a vida adulta são reformuladas.

O tema se presentifica nas brincadeiras, onde as crianças compartilham com o analista a leitura sobre seu lugar no mundo. Para ilustrar, foi apresentada uma vinheta clínica, que permitiu refletir sobre a interpretação do paciente e dos pais com relação à circulação do falo na família e perceber como, na análise, a criança pôde expressar sua ambivalência quanto ao seu lugar.

Freud (1932) nos dá uma interessante contribuição ao tratar das brincadeiras como uma tentativa da criança de elaboração de suas questões. Na brincadeira de boneca, o autor pontua que tanto pode representar uma fantasia ativa – como quem se identifica com a mãe, que cuida de um bebê – como passiva, na qual a criança se retrata sendo cuidada pela mãe. A partir deste e de outros exemplos, transcendeu-se às rasas interpretações de associar certas brincadeiras a determinado gênero. Esse olhar é fundamental porque nos ajuda a compreender, à luz da singularidade e do contexto histórico do paciente, o que uma criança – menino ou menina – tenta perguntar, simbolizar e compreender quando brinca com bonecas, por exemplo.

Opondo-se à noção de um padrão de crenças engessado socialmente, que deságua no indivíduo e que transforma em estigma aquilo que se manifesta contrariamente ao convencional, a questão de gênero nos convida a pensar num trânsito entre as identidades e os papéis sociais. Citou-se o depoimento do sociólogo e ativista transexual, Miguel Missé: “Nos haviam explicado que ser trans era nascer em um corpo errado e assim seguem contando os grandes fenômenos midiáticos. Dizer que nosso corpo tem um problema e não que a sociedade é muito limitada, nos atribui a responsabilidade de resolver esse problema …A solução é convidar à transição de gênero o menino que expressa sua feminilidade extrema ou a menina com uma masculinidade extrema? O que eu quero é que os homens possam ser muito femininos e as mulheres muito masculinas”.

Na especificidade da clínica com crianças, perguntam se pode ser preciso e benéfico um diagnóstico que diz da sexualidade adulta futura de uma criança. Parafraseando Beauvoir, lembrou-se que há um processo subjetivo de apropriação do “tornar-se mulher”, que pode demandar tempo mais longo do que o da maturação do corpo. Do mesmo modo, esse tempo se faz necessário na constituição de um menino. Além disso, refletindo sobre aquilo que circula na dinâmica das relações familiares, não se pode minimizar as expectativas, projeções e todo tipo de subjetividade que se transmite dos pais aos filhos por vias inconscientes, e que marcam o sujeito de modo tão fundamental. Aquilo que não pode ser elaborado no adulto com relação à própria sexualidade pode causar um mal estar na relação com a sexualidade dos filhos, portanto também a indefinição se apresenta como grande fonte de angústia para os pais.

Ponderou-se também sobre algumas diferenças da infância de hoje, na cultura ocidental urbana, daquela da época de Freud. Em tempos de iPad, Facebook e Google, temos mais acesso, talvez mais narcisismo e mais imediatismo. Certas descobertas podem ser mais precoces na atualidade, o que nos convida a olhar para a infância sob uma nova perspectiva.

A cautela em fazer diagnósticos na infância nada tem a ver com não dar relevância e acolhimento para os conflitos de gênero vividos nesta fase, que evidentemente podem causar muitas dores e inibições. Mas tem a ver com discernir que podem haver outras questões envolvendo o processo de construção do psiquismo. Nossa função é de escutar, dar-se como testemunho, reconhecer o conflito, cuidar, acolher, nomear, ajudar a elaborar e a introjetar pulsões, dar suporte ao paciente para representar seu sofrimento e se responsabilizar por ele, apesar do que lhe possam ter feito.

Na clínica da adolescência, as questões retornam, ou às vezes persistem; segue-se na mesma ética: de não patologizar, de acompanhar o sujeito na escuta de seus desejos e de sua(s) possibilidade(s) de ser. E, sobretudo, de aguentar não saber.

Aborda-se então um importante diferencial da clínica psicanalítica. Para não compactuar com a precocidade dos diagnósticos tão determinantes, é preciso que o analista possa não saber a priori sobre o sujeito, para possibilitar ao analisando voltar-se a si mesmo, no tempo da análise, e usar a própria voz nas eventuais definições. Neste sentido, resgatou-se que o papel do analista é contribuir para que o corpo e o psiquismo possam ser historicizados em cada caso, permitindo que se desenhe o pertencimento, ao mesmo tempo em que o sujeito possa ser autor de sua biografia. A transidentidade chega ao consultório como uma possibilidade reivindicada pelos sujeitos e assim ela é considerada e legitimada, tanto quanto qualquer outra.

Terminadas as apresentações, em uma conversa fluida e engajada, o público se envolveu trazendo comentários e perguntas.

Referências

Clavreul, J. et all. O Casal Perverso, in O desejo e a perversão, 1990.

Freud, S. (1932). Feminilidade. In Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise. Conferência XXXIII. In: Edição Standart Brasileira das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.