Depressão: perdas, danos e ganhos. E o conto: A terceira Margem do Rio (Guimarães Rosa)

por Cláudia Arbex

Depressão: perdas, danos e ganhos
E o conto de Guimarães Rosa: “A terceira margem do rio”

“O psiquismo, acontecimento que acompanha toda a vida humana sem se localizar em nenhum lugar do corpo vivo, é o que se ergue contra um fundo vazio que poderíamos chamar, metaforicamente, de um núcleo de depressão. O núcleo de nada onde o sujeito tenta instalar, fantasmaticamente, o objeto perdido -objeto que, paradoxalmente, nunca existiu.

A rigor, a vida não faz sentido e nossa passagem por aqui não tem nenhuma importância. A rigor, o eu que nos sustenta é uma construção fictícia, depende da memória e também do olhar do outro para se reconhecer como uma unidade estável ao longo do tempo. A rigor, ninguém se importa tanto com nossas eventuais desgraças a ponto de conseguir nos salvar delas. Contra esse pano de fundo de “nonsense”, solidão e desamparo, o psiquismo se constitui em um trabalho permanente de estabelecimento de laços -“destinos pulsionais”, como se diz em psicanálise- que sustentam o sujeito perante o outro e diante de si mesmo.

Freudianamente falando, a subjetividade é um canteiro de ilusões. Amamos: a vida, os outros e sobretudo a nós mesmos. Estamos condenados a amar, pois com essa multiplicidade de laços libidinais tecemos uma rede de sentido para a existência. As diversas modalidades de ilusões amorosas, edipianas ou não, são responsáveis pela confiança imaginária que depositamos no destino, na importância que temos para os outros, no significado de nossos atos corriqueiros. Não precisamos pensar nisso o tempo todo; é preciso estar inconsciente de uma ilusão para que ela nos sustente.

A depressão é o rompimento dessa rede de sentido e amparo: momento em que o psiquismo falha em sua atividade ilusionista e deixa entrever o vazio que nos cerca ou o vazio que o trabalho psíquico tenta cercar. É o momento de um enfrentamento insuportável com a verdade. Algumas pessoas conseguem evitá-lo a vida toda. Outras passam por ele em circunstâncias traumáticas e saem do outro lado. Mas há os que não conhecem outro modo de existir; são órfãos da proteção imaginária do “amor”, trapezistas que oscilam no ar sem nenhuma rede protetora embaixo deles.”
*Maria Rita Kehl (Folha de São Paulo, Uma existência sem sujeito, 2003)

Pensamentos

Nomear o sofrimento, investigar suas causas, explorar suas manifestações, descobrir que a dor se expressa com diferentes intensidades e tons. Encarar essas dores, que revelam tanto. Entrar em contato, tirar o véu, abrir a ferida. Todo esse movimento coincide com as leituras sobre as depressões; permite que eu faça os nexos e revisite minha análise pessoal, a minha clínica, as percepções intersubjetivas no contato com os pacientes.
O entorno, no meio do qual vivemos, é de luz e sombra, espaço e compressão. E sob essa iluminação difusa o eu se guia, entre os ideais que cria e as realidades internas e externas , das quais se ressente tanto.
Uma nova linguagem permite que se explore mais a fundo outro universo. Amplio minha escuta ao apreender o “idioma” da tristeza: tristeza branda, tristeza profunda, histórica, tristeza ressignificada, tristeza contingente, que vai e vem, tristeza permanente, que está, e que, mesmo assim, pode dar espaço para alguma alegria e humor. Ou pode cortar o ar, fechar as portas e janelas, comprimir e desvitalizar, e ganhar outros nomes: depressão e melancolia.

A depressão

A depressão toma o sujeito, coloca-o num lugar de ar rarefeito, ladrão da energia do viver, da troca e da abertura.
O deprimido força-se a dar conta da própria vida, enfrentar o desânimo, as horas de trabalho, os encontros e compromissos; enfrentar os minutos longos de um dia que termina no sono e recomeça muito cedo, às vezes nas madrugadas insones, outras vezes ao abrir dos olhos.

A depressão impede essa abertura para o novo, porque se refere a um desinvestimento, empobrecimento da alma, da vontade. Cerram-se os olhos para a luz, abrem-se para a escuridão densa de uma sensação pesarosa.

A depressão eclode a partir de uma perda, separação de um objeto, rompimento de uma posição psíquica que sustenta uma ligação, reproduzindo aquele momento inicial de desamparo, da percepção da fragilidade da ilusão de ser único, e de ser um com o outro. Trata-se de uma situação traumática, contra a qual a impotência do sujeito humano o coloca em contato com os perigos vindos de fora e de dentro. Trauma que permanece solto e não transcrito, sem representação possível. Angústia e depressão abrigam- sob diferentes aspectos- traços do desamparo infantil.

Pode-se dizer que a angústia fala de um perigo por vir, endereçando-se ao futuro; a depressão, ao contrário, aponta para um fato consumado e se refere a um passado.

Para Green (1988) “a separação do corpo da mãe expõe o frágil eu do recém nascido a ataques de duas origens: um afluxo, uma intoxicação vinda do exterior, e um influxo, interno, de exigências e necessidades pulsionais. ”

Refletindo sobre os primeiros contatos com esse sentimento de perda do objeto ou de aspectos dele, Delouya (apud, 2001) aponta que “a superação ou vulnerabilidade a esse estado (depressivo), dependerão, em primeiro lugar, do objeto- da sua disponibilidade para com a criança desde os primeiros momentos de vida e, consequentemente, do trabalho de luto”, e completa dizendo que “o afeto depressivo situa-se nesse ponto central de transição, constitutivo do psiquismo, em que a abdicação narcísica da onipotência e da fusão, se faz necessária.”

Remetida às primeiras ligações leio em muitos escritos que a presença materna continente (ou daquele adulto que cuida e faz esse papel), é condição fundamental para que o psiquismo em constituição possa renunciar a essa fusão, que faz dele onipotente e objeto narcísico, e que ao mesmo tempo o aliena de si mesmo. Assim, quando essa condição não se faz presente, o sujeito estaria impossibilitado de reinvestir-se, de usufruir de uma condição de desapego.

André Green (1988) chama de estrutura enquadrante o que vem com o apagamento do objeto materno, mas apenas na hipótese do amor do objeto ser suficientemente seguro, podendo desempenhar, desse modo, o papel de continente de um espaço representativo. A criança pode suportar uma depressão temporária, se o objeto materno pode ser sustentado, mesmo não estando lá. Trata-se de ter conquistado a garantia da presença na ausência, por conta da possibilidade de preencher esse vazio com fantasias, ou seja, “investimentos eróticos e agressivos sob a forma de representações de objeto.”

O vazio nunca é percebido como tal pelo sujeito, já que a libido ocupa o espaço psíquico, mas acaba por desempenhar o papel de uma “matriz primordial dos investimentos futuros.” (Green, 1988)
Se, ao contrário disso, perpetua-se a simbolização da ausência, dificulta-se a construção fantasmática própria do trabalho de luto. Como pontua Horstein, “não há futuro psíquico possível sem tramitação de certas perdas. O depressivo é acossado de todos os lados: pelo objetal (perda do objeto), pelo narcísico (condicionado pela função do objeto na economia narcísica) e pela ambivalência(desfusão pulsional). Trata-se de uma batalha.” (Hornstein, 2008)

Mas quando e como o amor do objeto não é suficientemente seguro ou continente?

A mãe deprimida ou melancólica pode oferecer essa continência, nos primeiros tempos de vida da criança?

É provável que a mãe esvaziada de libido não possa se ligar à criança, a não ser com um frágil fio de suficiência, cuidando das necessidades de sobrevivência. Assim, com um investimento focado no apoio e na conservação, o psiquismo infantil ficaria a mercê do objeto que lhe oferece o mínimo necessário, sem nexos fortes de sustentação narcísica.

A sustentação narcísica remete ao eu–ideal, que necessita ser vivenciado mas também, e sobretudo, substituído. O eu-ideal constitui, nos termos de Lacan, a grade inicial ou o molde primário, como reflexo especular do corpo da mãe. Contudo, embora apareça como um projeto para a aquisição do próprio corpo, do eu, “essas feições iniciais –do ideal- inerentes ao estado de desamparo, colocam este eu incipiente em apuros, nas fronteiras da primeira configuração de si. “Sem um manejo e uma condução apropriados pelo objeto, o sujeito permanecerá fisgado à imagem do outro.” (apud Delouya, 2001)

Que caminho percorre o eu-ideal quando há uma possibilidade de separação do objeto?

As frustrações, que se iniciam com as ausências do objeto, e a falta de respostas imediatas do desejo de satisfação são o resultado do encontro com a realidade, com a cultura. Se o sujeito pode situar-se nesse lugar de incompletude, pode do mesmo modo, construir fantasias e ideais. Passa, então, de uma posição predominantemente narcísica para outra que, em contato com a realidade, projeta diante de si um ideal que substitui o narcisismo primário.

Assim, o ideal de eu representa um formação narcísica que nunca é abandonada e, desse ponto de vista, é estruturante do psiquismo de um indivíduo.

Ainda a respeito das primeiras relações experimentadas pela criança, volta-se a atenção para a condição psíquica da mãe, primeiro objeto de investimento libidinal. Desse modo, a maneira como ela transita pelas subjetividades próprias e alheias (da sua criança interna e externa), teria repercussões importantes na constituição de um psiquismo incipiente em vias de se estruturar.

Maria Rita KEHL (2009) aponta para a vivência de um vazio não criativo na criança. Introduz a ideia de que uma mãe excessivamente boa, que não dá espaço nem tempo para que se organize uma resposta em meio ao “nada” deixado pela sua ausência. A criança, assim, ficaria refém da própria inércia, entregue à movimentação exaustiva e invasiva dessa mãe, ansiosa por atender todas as suas (prováveis) necessidades; não haveria espaço para o desejo, porque não haveria falhas, nem lacunas e tudo aconteceria antes de um pedido, antes da necessidade se apresentar, preventivamente. Estando impedida de vivenciar o auto-erotismo (no sentido de servir-se dele para tolerar um tempo que se demora) e, ao mesmo tempo, ocupar-se com fantasias, para impedir o transbordamento do excesso de pulsão, a criança naufragaria no próprio vazio. Vazio de uma relação que não se estabeleceria entre si e o outro, nem nos gestos, nem no olhar, nem em imagens.

Entendo que afetos como o ódio do objeto- pelo abandono e pelo o que ele não deu- e o desamparo, precisam ser experimentados e de algum modo, suportados, para dar lugar a uma movimentação direcionada a uma superação dessa condição. Essa “superação” se traduziria por uma introspecção, uma capacidade de se voltar para dentro e, consequentemente, encontrar um eu diferenciado, apartado do outro.

Necessária para a constituição do psiquismo, Winnicott (2005) fala de uma capacidade de introspecção, que seria percebida e conquistada a partir do contato com um tempo próprio durante a ausência do objeto primordial. Ele a nomeia como depressividade: condição que permitiria forjar e conhecer a própria singularidade, apoiada em uma relação que teria tido lugar entre mãe e filho, num movimento de interação no qual um e outro se reconheceram.

De outro modo, impedido de experimentar uma introspecção criativa, o sujeito faria uma tentativa de anular a separação, a distância e o intervalo no tempo, para impedir que o ódio se instale e atue sobre o objeto, destruindo-o e condenando o sujeito a uma vazio insuportável. Mas é exatamente nesse intervalo, no tempo e no espaço, que está a saída para a construção de uma vida interna mais autônoma e menos alienada.

Uma relação simbiótica com a mãe, que insiste, tem efeitos nefastos no psiquismo. Assim como a insuficiência da mãe alquebrada, enfraquecida, o excesso da mãe eficiente também predispõe o sujeito a um vazio sem vitalidade, como duas paredes próximas, como uma fenda muito estreita.

Cada perda é vivida como morte, aprofunda-se e estreita-se a fenda. Trata-se de uma ferida aberta, sem cuidados. Trata-se da ausência de Eros, porque as separações são vistas e sentidas como um desligamento, um esvaziamento, um empobrecimento do próprio ego.

De acordo com MacDougall, se o psiquismo fica fixado a uma imago objetal arcaica, ficará mais tarde dependente de certos objetos, com uma intensidade que procura neles “o segmento perdido da estrutura psíquica”. (apud Sendyk, 2009)

A dependência química, por exemplo, pode servir de empréstimo para uma reação contra a condição depressiva que se impõe ( uma defesa), mantendo a ilusão de uma união fusional nunca desfeita com a imago materna. Funcionaria como um registro de narcisização, mesmo que artificial. Seguindo a idéia de uma prótese narcísica, ou de um artificialismo, a adicção ou qualquer tipo de dependência severa, parece servir como recheio de um vazio intolerável, vazio que denuncia a falta de resposta do outro.

Faces da Melancolia

A identificação narcísica é a mais primitiva, e fixa o sujeito numa posição de dependência total do objeto, concreta e sem intermediação simbólica alguma. Conserva o vínculo em que o objeto e o eu são os duplos um do outro.

A identificação melancólica, como uma das patologias narcísicas, é a forma fracassada da identificação simbólica com o ideal. Jean FLORENCE (1984) considera que, na melancolia, a perda do objeto não dá lugar a um luto, processo durante o qual a dor é vivenciada por algo que, dia após dia, a realidade faz reconhecer como perdido; nessa patologia, a perda do objeto dá lugar “a uma ligação sadomasoquista sem medida, delirante, no cenário do eu, fora de toda obediência à realidade.”

A impossibilidade de deparar-se com a insatisfação, assimilar o ódio pelo objeto que instaura a falta, e transitar num espaço de tempo que permita criar algo próprio, torna o sujeito propenso a uma depressão paralisante, à espera, sempre passivamente à espera do Outro. Um Outro que se tornará seu intérprete para sempre.

A tristeza profunda ou melancolia, também pode ser escutada como “sinal de um ego primitivo ferido, incompleto, vazio.” ( KRISTEVA,1989)

Para Freud, a angústia de morte da melancolia é atribuída a um ego resignado, por se sentir odiado e perseguido pelo superego, em vez de se sentir amado. “Com efeito, viver tem para o ego o mesmo significado que ser amado: ser amado pelo superego.” (FREUD, 1923)

É a falta que dá lugar ao desejo. A falta é instaurada pela insatisfação, como um alargamento espaço temporal, e necessita ser substituída por uma construção singular, sob pena de ser transformada em um buraco negro. Essa substituição, porém, só se torna possível a partir de um movimento de diferenciação e separação. O desejo precisa de espaço e tempo para ser reconhecido, legitimado. Tempo de esvaziar para preencher, espaço para perceber-se separado. Duas condições que, se sustentadas, podem fazer da falta uma pré-condição para que o psiquismo se organize e sustente as renúncias, e a partir delas, possa fazer escolhas.

Mas a falta pode também tornar-se um buraco na malha representativa do eu, pelo qual se esvai a energia libidinal. Esse vão sem significação, expressa a impossibilidade do melancólico de se assegurar da presença do objeto, dos sedimentos das identificações primárias. Esses constituem e servem de sustentáculos das montagens fantasmáticas por meio dos quais o sujeito investe os objetos do mundo.

Desejo é movimento. O sujeito desejante pode erguer um projeto. O depressivo não acha que vale a pena.

Edler (2008) escreve que “O estado de desejo ou, em última instância, o desejo insatisfeito pelo desencontro com o objeto que com ele não coincide totalmente manterá o psiquismo em movimento.”
O freio do sujeito deprimido às vezes se manifesta numa atitude de “não saber”; qualquer outro sabe mais sobre ele mesmo. O referencial externo o confunde e invade de mandatos contraditórios, de todos os tipos, com todas as demandas de histórias alheias.

Maria Rita kehl (2009) enfatiza que:
“A capacidade de captar o afeto de um outro precede a aquisição da linguagem. Nada resta à criança senão reagir à experiência afetiva da mãe ……Afora o que representa para a mãe, a criança não possui existência psíquica possível: fonte de vida para o filho, ela é também seu aparelho de pensar.”

É nessa condição de desamparo e dependência que o sujeito fica a mercê do outro, de um saber externo, de significantes que vazam de um olhar, do som de uma voz familiar, do calor do contato. Entregue aos cuidados do outro, sua vida só tem continuidade nesses encontros. O rompimento desse ciclo torna-se algo assustador, como a morte.

Toda vez que a separação e a diferença deixam de ser percebidas como aquisições psíquicas, uma situação desse tipo passa a ser temida, como se fosse uma perda, como um luto ameaçador e empobrecedor.

A produção imaginária nos depressivos é escassa, a pobreza das formações imaginárias deixa o sujeito preso a um oco psíquico. Por isso a ilusão de uma união fusional com a imago materna precisa ser mantida a todo custo. Mesmo que essa ilusão seja substituída por tudo que envolve o princípio de realidade, o desejo de fusão é uma busca permanente e nunca é saciado. Todo adulto tem em si uma criança que aspira, como uma única saída do desamparo, à união total com o outro. O erótico pressupõe a dissolução de um estado de existir descontínuo, e promete uma ocupação integral do ser. Não há distância, não há diferença possível.

Quando se vence a luta contra a divisão primordial que dá origem ao individuo, escreve MacDoughall (apud Sendyk, 2009), “cede-se lugar a ajustes variados, sintomáticos: a construção de modelos de personalidade narcísica, soluções adictivas como a dependência de drogas ou de medicamentos, alcoolismo, bulimia”, e um ataque permanente ao objeto e, portanto, ao próprio ego. Todo desligamento enfraquece o investimento libidinal erótico liberando, em conseqüência, investimentos destrutivos. As soluções adictivas apontam para uma dependência de próteses que materializem ilusoriamente ou alucinem o objeto ou partes dele.

Freud enfatiza que o melancólico se apropria do objeto, erigindo-o no próprio ego, para desse modo não correr o risco de esvaziar-se de seu conteúdo ou forma. Ao mesmo tempo, o ódio instalado pela sua perda, invade o sujeito, e o superego se constitui abarcando-o e proferindo ataques ao ego. A sombra do objeto recai sobre o ego. Perpetua-se uma ligação ambivalente e sádica que gera um ciclo vicioso culposo.

No melancólico fracassa a conservação do objeto no seio do eu. Fracassa também qualquer possibilidade de processamento e elaboração da ambivalência afetiva originária. O ódio predomina e se transforma numa arma suicida.

Por outro lado, o luto pressupõe o abandono de uma posição aderida ao objeto e identificada com ele. O objeto é abandonado e substituido, e isso significa dizer que o objeto é reconhecido como incompleto, portador de falhas. Se o luto é suportável, salvaguarda o contato com a realidade, e mais do que isso, sustenta o sujeito num lugar que o mantém (durante o processo) desembaraçado de inibições, sejam elas corporais, psíquicas ou relacionais.

A elaboração do luto traz um ganho narcísico, nas palavras de FREUD. Uma vez rompido o vínculo com o objeto aniquilado, a realidade acaba por conceder ao enlutado a vantagem de permanecer vivo.

Como se abandona o objeto perdido? Em que lugar um pai morto pode ficar, permanecer?

Renata Udler CROMBERG (2002/2004), em seu artigo, fala da recuperação de algo vivo, como imagem, traço de memória sensorial e perceptivo. Considera que o legado de um pai fecundo é uma presença interna, apropriada pelo filho. “É preciso, sim, assassinar o pai na fantasia para poder aceitar a sua morte. Assassinar o excesso de pai, devorar e mastigar o corpo imaginário do pai idealizado.” Esse movimento traduz um operação psíquica, segundo CROMBERG, “necessária para que se tome para si o que antes era atribuído ao pai:D a função de abertura e acesso a erogeneidade, constantemente presente e renovada.”

A característica definidora da posição melancólica é a impossibilidade permanente do sujeito de fazer o luto. O sujeito insiste por manter algo de um ideal no interior do eu. A depressão surge da falta de ideais, e na tentativa do sujeito ser seu próprio ideal, ele fracassa. E desse fracasso a depressão se alimenta e cresce.

Necessária como caminho para uma introspecção que dá corpo ao ego, mas também, perversa e desvitalizadora, a depressão tem muitas caras.

Mas a melancolia é, de longe, a cara mais feia e cruel da depressão.

O conto: A Terceira Margem do Rio (Guimarães Rosa)

Certa de que uma obra de arte pode suscitar diversas e amplas leituras e interpretações, pela própria grandiosidade que abriga em si, faço uma abordagem psicanalítica do conto de Guimarães Rosa, ciente de que se trata apenas de um viés, dentre um universo de abordagens possíveis.

O conto me proporcionou a oportunidade de exercitar, a partir de uma visão muito pessoal, a re-significação de leituras, discussões e reflexões sobre as depressões.

Escolhi a “A terceira margem do rio”, que ao me tocar profundamente, pareceu conversar com as idéias e considerações sobre a melancolia, “injetando na veia”( como toda grande obra) aquela substância amarga e fria que percorre o corpo de um enlutado, pela perda do objeto amado.

Narrado em primeira pessoa, descreve, em poucas páginas e com uma intensidade impressionante, a partida de um homem, pai de família, que abandona tudo para morar dentro de uma canoa, no meio do rio.

Sob a perspectiva do filho, o pai torna-se ausência e presença, locado em um universo indeterminado e sem possibilidade de significação, em águas turvas, na “terceira margem” do rio.
O conto traz a idéia da existência de um lugar em que movimento e estagnação coexistem: a canoa se embala sobre águas paradas.

Lugar sem nome. Espaço no qual fica aprisionado o depressivo: um espaço psíquico esvaziado, destacado do entorno, solitário, que impede um deslocamento.

A tentativa angustiada de contato do filho-narrador com o pai percorre o conto inteiro, como se houvesse, a partir de sua partida, uma intensificação da ligação com ele.

A terceira margem nos remete a um espaço que é o avesso do que se delimita ou se conhece. Toda a subjetividade é impressa nas percepções do personagem- narrador, que pensa o pai dentro da canoa, no meio do rio.

Identificado maciçamente com ele, o filho fica preso de uma culpa que o leva a desejar tomar o seu lugar.

Homens lançados à margem de qualquer possibilidade, pai e filho se demoram e se encontram e desencontram, imaginariamente, no meio do rio.

Metáfora da morte, a terceira margem é lugar nenhum; é ausência e desamor. O pai é o meio do rio, de águas mais profundas, inacessível ao olhar, frio.

O filho é culpa, abandono de si, presa da angústia e do desinvestimento do pai.

Morrem pai e filho.

Pai morto…mãe morta… Uma passagem do texto de Green (1988) descreve o que pode ser a tormenta do sujeito, cujo objeto de amor (uma mãe enlutada), está morto e perdido para ele:
“…Presente morta, mas assim mesmo presente. O sujeito pode cuidar dela , tentar acordá-la, animá-la, curá-la. Mas se, em contrapartida, curada, ela acorda, se amina e vive, o sujeito a perde também, pois ela o abandona para cuidar de suas ocupações e investir outros objetos. De forma que lidamos com um sujeito preso entre duas perdas: a morte na presença ou a ausência na vida. Disto decorre a extrema ambivalência quanto ao desejo de devolver a vida à mãe. ”

Passagens

“Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente- minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.”

Ausência sentida, silêncio e ruído, o pai se retira desde sempre. Não entra em cena, não “faz liga”, não ralha e não rege, não participa, não se envolve.
Pai que nunca esteve, passa a habitar um imaginário pobre de referências, escasso de fantasias.

“Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo- a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.”
O desligamento se anuncia. O deslizar da canoa prenuncia o distanciamento inevitável e a ausência.
Pai que se torna figura fugidia, distanciada de uma realidade compartilhada, um apêndice, uma ferida aberta.

“Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava aquela invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais.”
Presença ausente, o pai vira um fantasma. Inaugura um sentimento de abandono; o inconformismo invade o filho, instala a necessidade de achar um sentido para o que não se explica. O vínculo atormenta, vínculo com aquele que parte, desaparece e não volta.
Separar-se do pai vira uma tarefa impossível.

“Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o que comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora.”
Alimento que aprisiona porque perpetua a vida, fugidia, do objeto. Vida nenhuma, cercada de uma atenção suspensa, alerta, esperançosa. O filho conserva e preserva a presença ausente do pai.

“Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou nem em chão nem capim. …”
O pai passa a não pertencer a lugar nenhum, despoja-se da realidade concreta e se despede do viver.
Corta os laços, como quem morre, ou pula num abismo, que é um fundo insondável.

“…não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e , se , por pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos”
Angústia e dor. Ferida por não recuperar o que não se dá por perdido, ou o que não se quer perder. Marca traumática de uma perda insuportável: separação “à fórceps”, “arrancamento”.

“…se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não encontrável?”
A tormenta de estar perto e, ao mesmo tempo, impedido de estar junto, é um vínculo mortífero.
O desejo de afastamento e o ódio se transformam em uma espera passiva, desejosa do movimento alheio, de aproximação, que nunca acontece.

“…eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei- na vagação, no rio, no ermo- sem dar razão de seu feito.”
Culpa e resignação.
O sujeito justifica seu aprisionamento, adere ao outro, camuflagem de si mesmo. Cuida deste que é o outro em si mesmo.

“Sou homem de tristes palavras. De que era que tinha tanta, tanta culpa? Se meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio- pondo perpétuo. Eu sofria já o começo da velhice- esta vida era só o demoramento.”
O tempo quase para, mas segue passando ao largo da vida. Espera eterna, sem movimento.
Pai e filho, estagnados em uma união de morte. Ligação e desligamento…

“Mas, então, ao menos, que , no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro- o rio.”
Desejo louco de substituir o pai, traga-lo para o fundo da alma e transformar-se nele.
Melancolicamente , afogar-se nas águas turvas e confundir-se nelas.

Bibliografia:

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