Sobre a habilidade de transitar pelas fronteiras

por Tânia Corghi Veríssimo

Quem deteria a patente disso que se faz absolutamente universal como categoria, indiscutivelmente, singular em seus modos de expressão e recebe o nome de sofrimento?

Sofrimentos psíquicos – As lutas científicas da psicanálise e da psiquiatria pela nomeação, diagnóstico e tratamento, livro derivado da dissertação de mestrado de Julia Catani, é uma obra que, ao apresentar seu título, enuncia para o leitor uma odisseia a ser empreendida, antes mesmo de ele folhear suas primeiras páginas. Explicativo tanto quanto à sua proposta de abordagem temática e descritivo como ao seu objetivo de pesquisa, o título, por si só instigante, funciona como um convite à adoção de uma postura analítica para quem nele se debruçar, naquilo que se refere à decomposição das partes de um texto e de importantes palavras ali encadeadas.

Na cadeia de palavras entoadas pela autora para intitular seu trabalho, deparamos, primeiramente, com a terminologia sofrimentos psíquicos, substantivo flexionado no plural. Ao longo da leitura, percebe-se que essa escolha pelo plural não atende a um mero formato gráfico e se constitui como importante diretriz para uma pesquisa que explora a pluralidade de expressões dos sujeitos em sofrimento ante o desafio da nomeação, diagnóstico e tratamento oferecidos pelas ciências.

No prefácio, Dunker pontua o sofrimento como “categoria que não é nem psicanalítica nem psiquiátrica, mas universal” (p. 13), afirmando-o em seu caráter transcendente, não circunscrito em bordas de um único campo ou em um único discurso. Foucault (1996) nos lembra que: Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder. Nisto não há nada de espantoso, visto que o discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é também, aquilo que é o objeto do desejo;

[…] a história não cessa de nos ensinar, o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual queremos nos apoderar, permitir a transubstanciação e fazer do pão um corpo. (p. 10-11)

Uma vez no campo do discurso, abrem-se questões em torno de um panorama não mais universal. A palavra lutas, encontrada no título, elimina a noção de uma suposta neutralidade e enuncia a busca das ciências por uma hegemonia discursiva. Quem deteria a patente disso que se faz absolutamente universal como categoria, indiscutivelmente, singular em seus modos de expressão e recebe o nome de sofrimento?

Na apresentação, o leitor encontra tanto como objetivo da pesquisa “(…) a descrição e a análise dos conceitos de Transtornos Somatoformes (TS) na perspectiva psiquiátrica e psicanalítica e para isto realiza um mapeamento e uma discussão da temática de modo histórico e nos diferentes campos do conhecimento” (p.17) quanto com a fronteira a partir da qual a autora situou as lutas científicas da psiquiatria e psicanálise, ou seja, a investigação das proximidades existentes entre o conceito de histeria na obra freudiana e o conceito de TS, no Manual Diagnóstico e Estatístico de transtornos mentais (DSM) e na Classificação Internacional de Doenças (CID) em suas diferentes versões. A obra introduz cruzamentos entre discursos e tempos históricos, abrindo oportunidade para boas reflexões. De um lado a histeria, diagnóstico bastante explorado, de caráter fundante para a psicanálise, desde o século XIX alvo das pesquisas de Freud e Charcot; do outro os transtornos somatoformes, uma nomeação recente oferecida pela psiquiatria em versões da CID e do DSM reformuladas ao longo do século XX e XXI.

Ao optar por deslindar uma fronteira entre psiquiatria e psicanálise, o trabalho revela sua complexidade e se coaduna a uma definição de Martins (2014), quando discute aspectos da multiplicidade da fronteira:

(…) lugar revelador do desencontro de temporalidades históricas, aquilo que configura o que é essencialmente o lugar de alteridade. A fronteira é o lugar da liminaridade, da indefinição e do conflito. Tem sido o lugar da busca desenfreada de oportunidades. É um lugar privilegiado de observação sociológica e dos conflitos e dificuldades próprios da constituição do humano no encontro de sociedades que vivem no seu limite e no seu limiar da história. (p.10)

O livro divide-se em oito capítulos. O primeiro refere-se a uma introdução dos elementos de um mapa do sofrimento psíquico nos séculos XX e XXI, perpassando a histeria e os transtornos somatoformes. O segundo e o terceiro entoam uma discussão sobre o diagnóstico da histeria em psicanálise e questão do diagnóstico em psiquiatria, respectivamente. O quarto e o quinto tratam dos transtornos somatoformes nas diferentes versões da CID e do DSM. O sexto discute a identificação do sofrimento psíquico no campo científico, enquanto o sétimo, último capítulo antes das considerações finais, traz como título uma pergunta: “A histeria e os transtornos somatoformes: nomes diversos para a compreensão do mesmo sofrimento psíquico?”.

O respeito à historicidade serviu como ponto de partida essencial para a formulação dessa questão e a abertura de tantas outras na obra. A partir de um resgate criterioso, primeiramente da histeria em Freud, depois da classe de transtornos somatoformes na CID e no DSM, das primeiras às últimas reformulações desses manuais, Catani constatou a existência de uma base comum entre os dois diagnósticos, concluindo que o conceito psiquiátrico de transtornos somatoformes teria sua origem calcada na histeria, tal como concebida pela psicanálise. A análise crítica do percurso do DSM revelou que, após um período de prevalência, houve um distanciamento significativo da participação da psicanálise e da psicodinâmica na compreensão e definição dos transtornos somatoformes, culminando em radicalidades e efeitos. Enquanto até o DSM-II de 1968 a histeria se fazia como grande representante diagnóstica, no DSM-III de 1980, versão que se pretendeu ateórica, o termo fora completamente eliminado e substituído pela definição sintoma conversivo, por ser considerado mais preciso pelos autores do manual (APA, 1980). 154 O DSM-IV (1994), configurou-se como uma versão extremamente ampliada que apresenta 297 transtornos em 800 páginas. Nela, o nome neurose fora completamente abolido, enquanto a histeria foi diluída entre os nomes transtornos somatoformes, transtornos factícios e transtorno de personalidade histriônica. O DSM-V (2013), por sua vez, expôs uma alteração da nomenclatura de transtornos somatoformes para sintomas somáticos e transtornos relacionados, com o argumento de que a antiga terminologia se mostrava confusa pela não separação mente e corpo.

O acompanhamento das reformulações dos manuais, por conseguinte, evidenciou uma proliferação da gama de nomes/diagnósticos oferecidos para a descrição dos sofrimentos apresentados pelos pacientes. Sobre essa tendência, a autora problematizou: As classificações, ao longo da história dos acometimentos mentais, permitem uma ordenação e um melhor entendimento para tratar os pacientes. Em qualquer lugar do mundo é possível, a partir do código do diagnóstico, estabelecer um tratamento. Em contrapartida, os esforços pela objetivação e quantificação do mal-estar produzem um número cada vez maior de fragmentações, e o resultado destes empenhos podem ser observados nas edições da CID e do DSM e em outros textos da literatura especializada. A lógica que preside as classificações leva os especialistas a criarem novas categorias quando se considera que as anteriores não atendem às necessidades apresentadas pelos pacientes. (p.18) Posteriormente, indagou: “Assim, diante das constatações que emergiram na pesquisa, é quase como se fosse permitido perguntar: se a medicina desconhece a causa, o problema está na saúde mental do doente?” (p. 185).

Interessante notar que, mesmo em tempos de fragmentações diagnósticas, Catani manteve viva sua postura analítica, estabelecendo um belo e detalhado percurso etimológico que poderia ser comparado ao empreendido por Freud no Unheimlich de 1919, em seu caminho pelas filigranas e contradições existentes numa zona de complexidade discursiva. A autora perscrutou os manuais pari passu, questionando cada palavra usada para nomear os transtornos somatoformes e seu suposto distanciamento da histeria. Deparou-se com um panorama formado por lacunas, escolhas por certas nomenclaturas, permanências, alterações, desaparecimentos de termos com e sem explicações, angariando argumentos fundamentados na história para abrir uma discussão pertinente.

No capítulo seis, encontra-se uma importante reflexão sobre a nomeação, em sua função e em seus paradoxos nessa busca pela classificação do sofrimento na CID e no DSM. A nomeação do sofrimento é entendida como fundamental, gesto apaziguador da angústia diante de um evento de que pouco se sabe, motor da ciência diante dos fenômenos a serem pesquisados. No entanto, segundo Catani, a busca desenfreada por definição, por nomes que chegam desacompanhados de sua história e de qualquer sentido, tão sabidos e decorados pelos profissionais, acaba por produzir efeitos iatrogênicos ao tratamento. Nessa discussão, reconhece-se a utilidade do DSM como instrumento eficaz no campo científico, empregado por diversos profissionais e em áreas distintas para identificar o sofrimento mental, mas problematiza-se seu uso. A autora parte da premissa de que “para pensar é preciso classificar e para classificar é preciso pensar” (p 152) e em sua pesquisa constata que diante da urgência em nomear o sofrimento psíquico, essa lógica não se sustenta. O pensar e o classificar se desvinculam, profissionais se mostram cada vez menos dispostos a escutar os pacientes, resultando no empobrecimento da escuta clínica. Nesse cenário, ocorre que muitos pacientes não melhoram diante dos diversos tratamentos ofertados; pelo contrário, produzem novas manifestações e maneiras de expressarem seus conflitos.

O reconhecimento do classificar e do pensar como ações indissociáveis na prática clínica e nesta pesquisa foi justamente o que permitiu à autora colocar em xeque o efetivo desaparecimento da histeria dos manuais. Ela constatou que, mesmo após o rechaço dessa terminologia desde o DSM-III (1980), o cerne da definição freudiana de histeria, a saber, o que não pode ser verbalizado por meio das palavras é investido no corpo, ainda vigora e constitui a categoria de transtornos somatoformes. Ao pensar a história das classificações, concluiu que histeria e transtornos somatoformes, por mais que recebam novas nomenclaturas pelos manuais, ainda são categorias muito mais próximas do que os profissionais geralmente percebem e admitem. Por outro lado, identificou uma diferença fundamental entre ambos os diagnósticos, considerando que os pacientes com transtornos somatoformes guardam semelhanças com a histeria na prática, em suas maneiras de operar; apresentam algum tipo de funcionamento psíquico similar ao desse quadro, mas, parecem padecer de uma constituição subjetiva menos elaborada. Entende-se que nessa condição crítica e, somente nessa condição, seria possível para a autora traçar paralelos profícuos entre histeria e transtornos somatoformes e concluir que:

“(…) a histeria e os transtornos somatoformes são sim iguais, mas também são, sim, diferentes, apoiando-se no dito de que ambos consistiriam em “…uma doença que não o é embora seja” (p.190).

A proposta de inclinar-se sobre os casos de transtornos somatoformes em seu trabalho no Ambulatório de Transtornos Somatoformes (Soma) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-HCFMUSP) constitui mais um aspecto importante desta pesquisa, revelador da habilidade de Catani em transitar pelas fronteiras. No contexto de corrida por classificações, dissociação entre o pensar e o classificar, nomeações desconectadas de historicidade, surgem os transtornos somatoformes, rebento rebelde dessa trama discursiva, diagnóstico que introduz paradoxos. A começar pela sua configuração, um compilado de transtornos – transtorno de somatização, transtorno somatoforme indiferenciado, transtorno conversivo, transtorno doloroso, transtorno disfórmico corporal e transtorno somatoforme sem outra especificação (CID 1992) – em um mapa de tantas nomenclaturas que, até então, não deram aos profissionais a condição de estabelecer alguma bússola para a indicação de um tratamento preciso aos seus pacientes.

No capítulo cinco, Catani aponta para algumas divergências na definição do conceito de transtornos somatoformes, inclusive entre a CID e o DSM, e pontua que, do ponto de vista histórico, muitos diagnósticos, incoerentes e sobrepostos foram empregados para identificar e diferenciar os transtornos somatoformes. Depois, os transtornos somatoformes pertencem a uma classificação diagnóstica que, ainda que composta por uma lista de critérios para sua confirmação, tem como ponto central a exclusão de outros quadros psiquiátricos ou médicos, tal como mencionado até o DSM-IV-R. A afirmação do diagnóstico se dá pela exclusão e revela um público errante e desviante, que traz contradições como a de não pertencer a um quadro para encontrar um lugar de pertença ou de não ter nome definido para ser nomeado. O livro mostra imprecisões de sujeitos que perambulam pelas diferentes especialidades médicas em busca de sentidos aos fenômenos de seus corpos e parecem endereçar, no mínimo, um duplo recado provocativo a quem ouve. Às ciências ávidas por nomenclaturas, cada vez mais empenhadas em controlar e quantificar o sofrimento, eis a rebeldia de quem se recusa ao encaixe nessa política. Aos profissionais que os recebem no cotidiano do ambulatório, está lançado o desafio da escuta e da sustentação do próprio não saber diante do que se revela, insistentemente, aquém das palavras.

Conclui-se que, mais do que tratar da complexidade do sofrimento humano, esse livro transmite a paixão pelo desconhecido, definida por Fédida como ingrediente fundamental da prática psicanalítica. Mas, a paixão, tal como o sofrimento, deve ser reconhecida em sua universalidade, transcendente ao terreno da psicanálise e a qualquer campo do saber, tornando essa obra muito bem-vinda a psicanalistas, psiquiatras, enfim, a todos os profissionais que mantêm vivo o interesse pelo enigma dos sofrimentos humanos e demonstram, sobretudo, aptidão por caminhar pelos confins da subjetividade.

Referências

Fédida, P. (1988) Clínica psicanalítica – Estudos. São Paulo: Ed. Escuta.

Foucault. M. (1996). A ordem do discurso. São Paulo: Ed. Loyola.

Martins, J. S de Souza. (2014). Fronteira: a degradação do outro nos confins