Sobre a habilidade de transitar pelas fronteiras

por Tânia Corghi Veríssimo

Quem deteria a patente disso que se faz absolutamente universal como categoria, indiscutivelmente, singular em seus modos de expressão e recebe o nome de sofrimento?

Sofrimentos psíquicos – As lutas científicas da psicanálise e da psiquiatria pela nomeação, diagnóstico e tratamento, livro derivado da dissertação de mestrado de Julia Catani, é uma obra que, ao apresentar seu título, enuncia para o leitor uma odisseia a ser empreendida, antes mesmo de ele folhear suas primeiras páginas. Explicativo tanto quanto à sua proposta de abordagem temática e descritivo como ao seu objetivo de pesquisa, o título, por si só instigante, funciona como um convite à adoção de uma postura analítica para quem nele se debruçar, naquilo que se refere à decomposição das partes de um texto e de importantes palavras ali encadeadas.

Na cadeia de palavras entoadas pela autora para intitular seu trabalho, deparamos, primeiramente, com a terminologia sofrimentos psíquicos, substantivo flexionado no plural. Ao longo da leitura, percebe-se que essa escolha pelo plural não atende a um mero formato gráfico e se constitui como importante diretriz para uma pesquisa que explora a pluralidade de expressões dos sujeitos em sofrimento ante o desafio da nomeação, diagnóstico e tratamento oferecidos pelas ciências.

No prefácio, Dunker pontua o sofrimento como “categoria que não é nem psicanalítica nem psiquiátrica, mas universal” (p. 13), afirmando-o em seu caráter transcendente, não circunscrito em bordas de um único campo ou em um único discurso. Foucault (1996) nos lembra que: Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder. Nisto não há nada de espantoso, visto que o discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é também, aquilo que é o objeto do desejo;

[…] a história não cessa de nos ensinar, o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual queremos nos apoderar, permitir a transubstanciação e fazer do pão um corpo. (p. 10-11)

Uma vez no campo do discurso, abrem-se questões em torno de um panorama não mais universal. A palavra lutas, encontrada no título, elimina a noção de uma suposta neutralidade e enuncia a busca das ciências por uma hegemonia discursiva. Quem deteria a patente disso que se faz absolutamente universal como categoria, indiscutivelmente, singular em seus modos de expressão e recebe o nome de sofrimento?

Na apresentação, o leitor encontra tanto como objetivo da pesquisa “(…) a descrição e a análise dos conceitos de Transtornos Somatoformes (TS) na perspectiva psiquiátrica e psicanalítica e para isto realiza um mapeamento e uma discussão da temática de modo histórico e nos diferentes campos do conhecimento” (p.17) quanto com a fronteira a partir da qual a autora situou as lutas científicas da psiquiatria e psicanálise, ou seja, a investigação das proximidades existentes entre o conceito de histeria na obra freudiana e o conceito de TS, no Manual Diagnóstico e Estatístico de transtornos mentais (DSM) e na Classificação Internacional de Doenças (CID) em suas diferentes versões. A obra introduz cruzamentos entre discursos e tempos históricos, abrindo oportunidade para boas reflexões. De um lado a histeria, diagnóstico bastante explorado, de caráter fundante para a psicanálise, desde o século XIX alvo das pesquisas de Freud e Charcot; do outro os transtornos somatoformes, uma nomeação recente oferecida pela psiquiatria em versões da CID e do DSM reformuladas ao longo do século XX e XXI.

Ao optar por deslindar uma fronteira entre psiquiatria e psicanálise, o trabalho revela sua complexidade e se coaduna a uma definição de Martins (2014), quando discute aspectos da multiplicidade da fronteira:

(…) lugar revelador do desencontro de temporalidades históricas, aquilo que configura o que é essencialmente o lugar de alteridade. A fronteira é o lugar da liminaridade, da indefinição e do conflito. Tem sido o lugar da busca desenfreada de oportunidades. É um lugar privilegiado de observação sociológica e dos conflitos e dificuldades próprios da constituição do humano no encontro de sociedades que vivem no seu limite e no seu limiar da história. (p.10)

O livro divide-se em oito capítulos. O primeiro refere-se a uma introdução dos elementos de um mapa do sofrimento psíquico nos séculos XX e XXI, perpassando a histeria e os transtornos somatoformes. O segundo e o terceiro entoam uma discussão sobre o diagnóstico da histeria em psicanálise e questão do diagnóstico em psiquiatria, respectivamente. O quarto e o quinto tratam dos transtornos somatoformes nas diferentes versões da CID e do DSM. O sexto discute a identificação do sofrimento psíquico no campo científico, enquanto o sétimo, último capítulo antes das considerações finais, traz como título uma pergunta: “A histeria e os transtornos somatoformes: nomes diversos para a compreensão do mesmo sofrimento psíquico?”.

O respeito à historicidade serviu como ponto de partida essencial para a formulação dessa questão e a abertura de tantas outras na obra. A partir de um resgate criterioso, primeiramente da histeria em Freud, depois da classe de transtornos somatoformes na CID e no DSM, das primeiras às últimas reformulações desses manuais, Catani constatou a existência de uma base comum entre os dois diagnósticos, concluindo que o conceito psiquiátrico de transtornos somatoformes teria sua origem calcada na histeria, tal como concebida pela psicanálise. A análise crítica do percurso do DSM revelou que, após um período de prevalência, houve um distanciamento significativo da participação da psicanálise e da psicodinâmica na compreensão e definição dos transtornos somatoformes, culminando em radicalidades e efeitos. Enquanto até o DSM-II de 1968 a histeria se fazia como grande representante diagnóstica, no DSM-III de 1980, versão que se pretendeu ateórica, o termo fora completamente eliminado e substituído pela definição sintoma conversivo, por ser considerado mais preciso pelos autores do manual (APA, 1980). 154 O DSM-IV (1994), configurou-se como uma versão extremamente ampliada que apresenta 297 transtornos em 800 páginas. Nela, o nome neurose fora completamente abolido, enquanto a histeria foi diluída entre os nomes transtornos somatoformes, transtornos factícios e transtorno de personalidade histriônica. O DSM-V (2013), por sua vez, expôs uma alteração da nomenclatura de transtornos somatoformes para sintomas somáticos e transtornos relacionados, com o argumento de que a antiga terminologia se mostrava confusa pela não separação mente e corpo.

O acompanhamento das reformulações dos manuais, por conseguinte, evidenciou uma proliferação da gama de nomes/diagnósticos oferecidos para a descrição dos sofrimentos apresentados pelos pacientes. Sobre essa tendência, a autora problematizou: As classificações, ao longo da história dos acometimentos mentais, permitem uma ordenação e um melhor entendimento para tratar os pacientes. Em qualquer lugar do mundo é possível, a partir do código do diagnóstico, estabelecer um tratamento. Em contrapartida, os esforços pela objetivação e quantificação do mal-estar produzem um número cada vez maior de fragmentações, e o resultado destes empenhos podem ser observados nas edições da CID e do DSM e em outros textos da literatura especializada. A lógica que preside as classificações leva os especialistas a criarem novas categorias quando se considera que as anteriores não atendem às necessidades apresentadas pelos pacientes. (p.18) Posteriormente, indagou: “Assim, diante das constatações que emergiram na pesquisa, é quase como se fosse permitido perguntar: se a medicina desconhece a causa, o problema está na saúde mental do doente?” (p. 185).

Interessante notar que, mesmo em tempos de fragmentações diagnósticas, Catani manteve viva sua postura analítica, estabelecendo um belo e detalhado percurso etimológico que poderia ser comparado ao empreendido por Freud no Unheimlich de 1919, em seu caminho pelas filigranas e contradições existentes numa zona de complexidade discursiva. A autora perscrutou os manuais pari passu, questionando cada palavra usada para nomear os transtornos somatoformes e seu suposto distanciamento da histeria. Deparou-se com um panorama formado por lacunas, escolhas por certas nomenclaturas, permanências, alterações, desaparecimentos de termos com e sem explicações, angariando argumentos fundamentados na história para abrir uma discussão pertinente.

No capítulo seis, encontra-se uma importante reflexão sobre a nomeação, em sua função e em seus paradoxos nessa busca pela classificação do sofrimento na CID e no DSM. A nomeação do sofrimento é entendida como fundamental, gesto apaziguador da angústia diante de um evento de que pouco se sabe, motor da ciência diante dos fenômenos a serem pesquisados. No entanto, segundo Catani, a busca desenfreada por definição, por nomes que chegam desacompanhados de sua história e de qualquer sentido, tão sabidos e decorados pelos profissionais, acaba por produzir efeitos iatrogênicos ao tratamento. Nessa discussão, reconhece-se a utilidade do DSM como instrumento eficaz no campo científico, empregado por diversos profissionais e em áreas distintas para identificar o sofrimento mental, mas problematiza-se seu uso. A autora parte da premissa de que “para pensar é preciso classificar e para classificar é preciso pensar” (p 152) e em sua pesquisa constata que diante da urgência em nomear o sofrimento psíquico, essa lógica não se sustenta. O pensar e o classificar se desvinculam, profissionais se mostram cada vez menos dispostos a escutar os pacientes, resultando no empobrecimento da escuta clínica. Nesse cenário, ocorre que muitos pacientes não melhoram diante dos diversos tratamentos ofertados; pelo contrário, produzem novas manifestações e maneiras de expressarem seus conflitos.

O reconhecimento do classificar e do pensar como ações indissociáveis na prática clínica e nesta pesquisa foi justamente o que permitiu à autora colocar em xeque o efetivo desaparecimento da histeria dos manuais. Ela constatou que, mesmo após o rechaço dessa terminologia desde o DSM-III (1980), o cerne da definição freudiana de histeria, a saber, o que não pode ser verbalizado por meio das palavras é investido no corpo, ainda vigora e constitui a categoria de transtornos somatoformes. Ao pensar a história das classificações, concluiu que histeria e transtornos somatoformes, por mais que recebam novas nomenclaturas pelos manuais, ainda são categorias muito mais próximas do que os profissionais geralmente percebem e admitem. Por outro lado, identificou uma diferença fundamental entre ambos os diagnósticos, considerando que os pacientes com transtornos somatoformes guardam semelhanças com a histeria na prática, em suas maneiras de operar; apresentam algum tipo de funcionamento psíquico similar ao desse quadro, mas, parecem padecer de uma constituição subjetiva menos elaborada. Entende-se que nessa condição crítica e, somente nessa condição, seria possível para a autora traçar paralelos profícuos entre histeria e transtornos somatoformes e concluir que:

“(…) a histeria e os transtornos somatoformes são sim iguais, mas também são, sim, diferentes, apoiando-se no dito de que ambos consistiriam em “…uma doença que não o é embora seja” (p.190).

A proposta de inclinar-se sobre os casos de transtornos somatoformes em seu trabalho no Ambulatório de Transtornos Somatoformes (Soma) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-HCFMUSP) constitui mais um aspecto importante desta pesquisa, revelador da habilidade de Catani em transitar pelas fronteiras. No contexto de corrida por classificações, dissociação entre o pensar e o classificar, nomeações desconectadas de historicidade, surgem os transtornos somatoformes, rebento rebelde dessa trama discursiva, diagnóstico que introduz paradoxos. A começar pela sua configuração, um compilado de transtornos – transtorno de somatização, transtorno somatoforme indiferenciado, transtorno conversivo, transtorno doloroso, transtorno disfórmico corporal e transtorno somatoforme sem outra especificação (CID 1992) – em um mapa de tantas nomenclaturas que, até então, não deram aos profissionais a condição de estabelecer alguma bússola para a indicação de um tratamento preciso aos seus pacientes.

No capítulo cinco, Catani aponta para algumas divergências na definição do conceito de transtornos somatoformes, inclusive entre a CID e o DSM, e pontua que, do ponto de vista histórico, muitos diagnósticos, incoerentes e sobrepostos foram empregados para identificar e diferenciar os transtornos somatoformes. Depois, os transtornos somatoformes pertencem a uma classificação diagnóstica que, ainda que composta por uma lista de critérios para sua confirmação, tem como ponto central a exclusão de outros quadros psiquiátricos ou médicos, tal como mencionado até o DSM-IV-R. A afirmação do diagnóstico se dá pela exclusão e revela um público errante e desviante, que traz contradições como a de não pertencer a um quadro para encontrar um lugar de pertença ou de não ter nome definido para ser nomeado. O livro mostra imprecisões de sujeitos que perambulam pelas diferentes especialidades médicas em busca de sentidos aos fenômenos de seus corpos e parecem endereçar, no mínimo, um duplo recado provocativo a quem ouve. Às ciências ávidas por nomenclaturas, cada vez mais empenhadas em controlar e quantificar o sofrimento, eis a rebeldia de quem se recusa ao encaixe nessa política. Aos profissionais que os recebem no cotidiano do ambulatório, está lançado o desafio da escuta e da sustentação do próprio não saber diante do que se revela, insistentemente, aquém das palavras.

Conclui-se que, mais do que tratar da complexidade do sofrimento humano, esse livro transmite a paixão pelo desconhecido, definida por Fédida como ingrediente fundamental da prática psicanalítica. Mas, a paixão, tal como o sofrimento, deve ser reconhecida em sua universalidade, transcendente ao terreno da psicanálise e a qualquer campo do saber, tornando essa obra muito bem-vinda a psicanalistas, psiquiatras, enfim, a todos os profissionais que mantêm vivo o interesse pelo enigma dos sofrimentos humanos e demonstram, sobretudo, aptidão por caminhar pelos confins da subjetividade.

Referências

Fédida, P. (1988) Clínica psicanalítica – Estudos. São Paulo: Ed. Escuta.

Foucault. M. (1996). A ordem do discurso. São Paulo: Ed. Loyola.

Martins, J. S de Souza. (2014). Fronteira: a degradação do outro nos confins

O racismo nosso de cada dia e a incidência da recusa no laço social

por Tânia Corghi Veríssimo

Através do presente artigo, pretende-se sustentar a hipótese da incidência do mecanismo da recusa no laço social, situando-o frente ao racismo na cultura brasileira. Destacam-se como eixos principais deste texto: a reflexão sobre o caráter do discurso tecido por alguns brasileiros atravessados pelo fenômeno do racismo em sua história, o tema da constituição do narcisismo do negro no laço social, além da questão do racismo enquanto discurso dirigido ao estrangeiro e revelador do desmentido da realidade.

Liberdade! Liberdade!

Abre as asas sobre nós,

Das lutas na tempestade

Dá que ouçamos tua voz

Nós nem cremos que escravos outrora

Tenha havido em tão nobre País…[1]

Hoje o rubro lampejo da aurora

Acha irmãos, não tiranos hostis.

(Medeiros e Albuquerque 1867-1934. Trecho do Hino da República – 1890).

No dia 12/09/14 o jornal O Estado de São Paulo publicou um artigo em que explicitou a posição da Organização das Nações Unidas (ONU) a respeito do tema do racismo contra o negro no Brasil[2]. Partindo de um relatório elaborado durante visita realizada no país em dezembro de 2013, momento no qual o debate em torno deste tema tornou-se acalorado aos ouvidos da sociedade, a matéria situou o fenômeno do racismo como algo estrutural e institucionalizado em nossa cultura. Algo tão institucionalizado que permeia todas as áreas da vida dos brasileiros. Dentre as questões sublinhadas pela Organização, merece destaque a referência ao chamado “mito da democracia racial” [3], apontado como um dos grandes obstáculos para a transformação/resolução da questão do racismo, uma vez que engendra a negação substancial de sua existência em nosso país.

Ainda no mês de setembro deste mesmo ano, o ex-jogador de futebol Edson Arantes do Nascimento, Pelé, conhecido mundialmente como Rei Pelé, em entrevista[4], teceu comentários sobre o episódio de racismo envolvendo o jogador Mário Lúcio Duarte da Costa, Aranha, goleiro que ao ser chamado de macaco pela torcida no estádio de futebol, indignado, interrompeu imediatamente a partida para reclamar sobre o ataque sofrido. Pelé se pronunciou:

“O Aranha se precipitou em querer brigar com a torcida. Se eu fosse querer parar o jogo cada vez que me chamassem de macaco ou crioulo, todos os jogos iriam parar. O torcedor grita mesmo. Temos que coibir o racismo. Mas não é num lugar publico que você vai coibir. O Santos tinha Dorval, Coutinho, Pelé… todos negros. Éramos xingados de tudo quanto é nome. Não houve brigas porque não dávamos atenção. Quanto mais se falar, mais vai ter racismo” (sic).

A fala de Pelé abre interrogações. Primeiramente, ele afirma que a coibição do racismo não se dará em lugar público, fazendo-nos perguntar, afinal, onde seria o lugar para coibi-lo? Depois, o ex-jogador encerra sua fala em defesa do silenciamento, da não circulação de palavras, abrindo mais uma pergunta: quais serão os destinos dados para aquilo que marca o corpo do sujeito e não pode ser nomeado como violência?

Diante destas matérias, ficam questões a serem pensadas pela psicanálise. Pretendo levantar algumas delas, elencando como eixos principais deste texto, a reflexão sobre o caráter da linguagem e do discurso tecido por alguns brasileiros atravessados pelo fenômeno do racismo em sua história, o tema da constituição do narcisismo do negro no laço social e a questão do racismo enquanto discurso dirigido ao estrangeiro, na relação com o desmentido da realidade. Através destes eixos, buscarei sustentar a hipótese da incidência do mecanismo da recusa frente ao racismo em nossa cultura.

Com efeito, também destaco uma questão que pretendo desenvolver neste artigo: uma vez que a recusa refere-se a o que não foi possível de se constituir como questão para um psiquismo cindido – ironicamente existente em regime de apartheid psíquico – a algo não nomeado/reconhecido pelo sujeito, ou seja, abolido simbolicamente; poderíamos pensar sobre o fenômeno do racismo, assunto tão em voga, tão debatido e instituído no discurso, através da chave da recusa?

Armadilhas da linguagem no cotidiano: a recusa e o narcisismo brasileiro

Rosa[5], em seu livro o “Não-Dito na psicanálise com crianças e adolescentes” teceu considerações sobre a impossibilidade de qualquer enunciado ser completo e exaustivo em sua expressão subjetiva. Segundo a autora, há sempre “um a mais” não- dito no enunciado presente e atuante para os sujeitos em suas relações, sendo o Não-Dito uma manifestação inerente à fala, denunciadora das diferentes facetas da linguagem, que traz à tona a relação com o inconsciente e a articulação desejo-castração no momento em que o sujeito se vê envolto pela complexa tarefa de expressar-se.

A linguagem, neste sentido, deve ser pensada como aquela que veicula as palavras, mas que por si só traz a marca da incompletude, das faltas e das insuficiências, fazendo o sujeito falante ter que se defrontar com os limites da expressão e a construção de manobras na tentativa de dar conta da tessitura de uma narrativa perante a realidade. Poderíamos denomina-las manobras da expressão, estas que invariavelmente revelam caráter capcioso e constituinte para nós, sujeitos de linguagem. Chamam a atenção algumas das injunções construídas que retratam a posição do negro na cultura brasileira. O que significa dizer, por exemplo, “Fulano é negro, mas é honesto”? Ou então, “Apesar da cor, ele trabalha bem”? Injunções tão arraigadas e naturalizadas no discurso social que por diversas vezes não são notadas. Interessante observar que mesmo quando, supostamente, tanto se falou e se desenvolveu em termos de racismo no país e no mundo, estas frases adversativas podem passar despercebidas ainda hoje no dia-a-dia. Do que se trata este despercebido[6]? Teria relação com a recusa?

Caberia argumentar que a relação “Fulano é…mas” não se reporta somente ao negro. Cotidianamente também escutamos “É pobre, mas é limpinho”, “É homossexual, mas é bacana”, “É gorda, mas é bonita”. Trata-se de injunções que localizam valores narcísicos em um campo de pertinência, ou seja, ideais de eu bem estabelecidos no psiquismo, relativos a um determinado contexto sócio histórico, sujeitos a variações no tempo e no espaço e que sugerem o tal “despercebido” no terreno do recalque e da negação e não no da recusa enquanto mecanismo em jogo.

Em seu artigo de 1925 – “A Negação”[7], Freud fornece elementos que embasam esta hipótese, postulando a negação como um mecanismo que se dá no nível da linguagem e que não impede a operação do recalque. Na negação, o recalque continua operando e o que vem à tona na fala do sujeito é a representação recalcada que só será manifesta na condição de um “não” em sua frase formulada. Através da formulação “Fulano é…,mas…” é possível, portanto, tomar contato com a vigência do recalque. O sujeito que o expressa aceita intelectualmente a veiculação do conteúdo recalcado, passado por este – e por quem o escuta – sem abrir conflitos, sem cessar o recalque.

À luz das teorias sexuais infantis exploradas em “Algumas Consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos”[8], podemos pensar que ao se estabelecer as adversativas “Fulano é…mas”, a fantasia do sujeito já se localiza no espectro da polaridade fálico-castrado, numa realidade psíquica que já admitiu a ausência do pênis na menina e a presença no menino, mas que sem poder significá-la pela via da diferença, estabelece o mais valor versus menos valor. Importante considerar que, diferentemente, do que não ocorre na recusa, há neste caso a atribuição de juízo de valor e existência da realidade pelo Eu, localizando, portanto, a existência do recalque na relação do brasileiro com o racismo.

Porém, identificar o recalque como um mecanismo presente no trato do racismo em nossa cultura, não implica em descartar a hipótese de que a recusa possa figurar no laço social diante desta pauta. Sabemos que a recusa é democrática do ponto de vista psíquico e econômico, podendo ser encontrada nas psicoses, perversões e neuroses a partir de manifestações avassaladoras e impossibilitadoras para os sujeitos. E por que não a recusa aqui?

Eis outra manifestação subjetiva posta em nossa vida social, causadora de estranhamento e reflexão: na cidade de São Paulo há um restaurante bastante conhecido, chamado Senzala. Localizado em um bairro nobre da cidade, existe desde a década de 70 e está muito bem consolidado como ambiente agradável e bem avaliado pela população de um modo geral. Em seu portal[9] é descrito como “um ambiente que na década de 70 tornou-se ‘a sensação da juventude’, um lugar gostoso de estar, ideal para dias quentes, dada sua amplitude, infra-estrutura e grande terraço”. Como contraponto, a enciclopédia virtual Wikipedia[10], traz a seguinte definição histórica de senzala:

“A senzala era uma espécie de habitação ou alojamento dos escravos brasileiros. Elas existiram durante toda a fase de escravidão (entre os séculos XVI e XIX) e eram construídas dentro da unidade de produção (engenho, mina de ouro e fazenda de café). As senzalas eram galpões de porte médio ou grande em que os escravos passavam a noite, tinham grandes janelas com grandes grades e seus moradores só saiam de lá para trabalhar e apanhar. Muitas vezes, os escravos eram acorrentados dentro das senzalas para evitar as fugas. Costumavam ser rústicas, abafadas (possuíam poucas janelas) e desconfortáveis. Eram construções muito simples feitas geralmente de madeira e barro e não possuíam divisórias. Os escravos dormiam no chão duro de terra batida ou sobre palha. Costuma haver na frente das senzalas um pelourinho (tronco usado para amarrar o escravo para a aplicação de castigos físicos).”

Enfim, como dizer que um brasileiro não sabe o que é uma senzala ou algo de sua conotação na história de um país que viveu por, pelo menos, três séculos em regime escravocrata? O que representa para um país que traz a escravidão em sua bagagem histórica referendar um restaurante com o nome de Senzala? Poderíamos pensar que quando o assunto reporta este período violento e traumático de sua história o “brasileiro sabe, mas mesmo assim”, expressão cunhada por Octave Mannoni a respeito do mecanismo da recusa?

Mannoni [11] debruçou-se sobre o poder das crenças na constituição do fetichismo e da recusa, referindo que a criança, ao tomar contato com a realidade da anatomia feminina, desaprova aquilo que vê (não vê) ou repudia a falta encontrada na mãe a fim de conservar sua crença na existência do falo nesta. Impossível deparar-se com uma mãe castrada e passar incólume pela experiência. Segundo o autor, a criança, nesta circunstância, após atravessar a experiência não mais conserva intacta a crença na completude materna; sem dúvida ela conserva esta imagem, mas igualmente a abandona, tendo agora uma atitude dividida em face dessa crença. Ela agora “sabe, mas mesmo assim”.

Sabe-se que a crença na presença do falo na mãe é a primeira crença a que se renuncia e o modelo de todas as outras renúncias para o sujeito. A crença, muito poderosa e difícil de abrir mão, pode se manter apesar do desmentido da realidade e constituir-se num campo transcendente e flutuante de verdade e mentira onde ninguém acredita nela e, ao mesmo tempo, todo mundo acredita. Algo que aparentemente ninguém assume. Mas acredita-se. “Não há nada mais banal que uma observação como esta – e, no entanto, se nela nos detivermos, nada mais desconcertante”[12].

Para Ribeiro[13], pode-se dizer que o Brasil é um país traumatizado que jamais ajustou contas com suas dores terríveis, obscenas, da colonização e da escravatura [14]. Ele aponta a falta de elaboração da violência escravagista no país ainda como o mais grave, já que redunda na repetição mortífera e obsessiva dos traumas de desigualdade e iniquidade a que ficamos submetidos em nossa história.

O Restaurante Senzala não abre conflitiva ou incômodo. Nada desconcertante. O nome Senzala alude a um local de opressão, violência e massacre de seres humanos que marca a história do Brasil. No entanto, ter seu nome referendado a um restaurante não causa vergonha ou qualquer escândalo desta ordem. E se o nome fosse Restaurante Auschwitz?[15] Que absurdo seria! Tanto Auschwitz quanto a Senzala representam locais da catástrofe humana aos olhos do mundo, porém a Senzala foi integrada à cultura brasileira como ambiente que, embora sabido como símbolo da desumanização do negro, permanece mesmo assim aceita e respaldada pelo então já mencionado mito da democracia racial.

Dadas estas considerações, parto da hipótese de que quando o assunto é a relação do brasileiro com a própria história e o traumático advindo desta, há que se considerar a operação da recusa como um dos mecanismos figurantes no laço social. Se Penot [16] ao tratar da heterogeneidade fundamental dos suportes narcísicos do ser humano sublinhou dois registros diferentes – a saber, a prematuridade do corpo ao nascer e a antecedência do discurso parental sobre o corpo do sujeito – não deixou de enfatizar a premência de um discurso que o recém-chegado recebe de seu primeiro entorno como determinante na designação dos registros que posteriormente construirá sobre si mesmo no mundo, por que não pensar sobre o discurso da Pátria-Mãe como tão determinante na constituição de um lugar narcísico para o brasileiro?

Palavras da Pátria-Mãe que desde tempos de outrora designam o brasileiro como sujeito cordial, amigável, extrovertido e criativo. Aquele povo de fácil trato e grande abertura e disponibilidade para aceitar o diferente. Povo miscigenado! Povo feliz! Como seria abrir mão desta crença? Como seria para o brasileiro, do ponto de vista narcísico, reconhecer que há contas a serem ajustadas? Como seria sua sustentação narcísica após a admissão de registros traumáticos da história, tais como o massacre do negro e o racismo tão presente? Quando o assunto é a discriminação contra o negro, o brasileiro recusa a própria realidade racista na tentativa de evitar um grande abalo narcísico.

O negro, a constituição do narcisismo, a recusa

Costa[17] é um interlocutor privilegiado naquilo que tange a problemática da constituição narcísica do sujeito negro, afinal, o autor se deteve sobre as questões metapsicológicas a serem atravessadas por este na árdua empreitada de fazer-se sujeito no mundo. Através de uma rica reflexão, estabeleceu alguns eixos temáticos de abordagem do narcisismo do negro em suas peculiaridades, sendo estes a relação deste sujeito com o próprio corpo e as vicissitudes existentes na construção do exercício do pensamento. Além disso, ao longo de sua produção, cabe colocar que, embora o autor não mencione a recusa propriamente dita como mecanismo a ser encontrado neste processo, alude a dois fenômenos que sugerem a sua presença na formação identitária do sujeito negro: a clivagem psíquica e o fetichismo.

Ao longo de um capítulo no qual buscou aprofundar a reflexão sobre o negro em sua relação com a cultura racista e com o próprio corpo, conta-nos de um psiquismo selado pela perseguição, repúdio, ódio, revolta, amargura, vigilância e controle deste corpo tão distante do ideal de brancura imposto a ele como desejável. Neste sentido, habitar um corpo negro implicaria em atravessar uma gama de afetos intensos e a violência causada por uma dupla injunção: a de encarnar o corpo e os ideais de ego do sujeito branco -ideais incompatíveis com a sua estrutura física- e a de recusar, negar e anular a presença do corpo negro em sua realidade concreta.

Se lembrarmos com Freud que “O Eu é sobretudo corporal, não apenas uma entidade superficial, mas ele mesmo a projeção da superfície”[18], constatamos que a dupla violência sofrida pelo corpo negro o exclui de uma suposta norma psicossomática e o coloca diante de uma dor narcísica tal que o exercício do pensamento, representativo por definição, neste caso, sofre uma subversão: é acossado por sofrimento, censura, auto-restrição, sendo forçado a não representar a identidade real do sujeito, de modo a negar e afirmar a presença da negritude. O pensamento do negro, atravessado pelo racismo, vivencia a condição de uma abolição simbólica.

Ao deparar-se com a complexidade da questão, Costa é categórico na compreensão de que tais entraves não poderiam ser explicados exclusivamente pela chave do recalque. Ele menciona tanto fenômenos como a foraclusão e a alucinação negativa, ambos reveladores de um pensamento privado do confronto com outro pensamento, perdido, portanto, numa espécie de solipsismo e impermeabilização.

Ao dizer que “a identidade do negro, temida e odiada, emerge como um corpo estranho que, o pensamento surpreendido em suas lacunas, não sabe qualificar”, ele, primeiramente, menciona a recusa, para depois mencionar a alucinação negativa e fundamentar seu raciocínio:“(…) após ter sido recusada, melhor dito, alucinada negativamente, volta à tona. Não com a inquietante estranheza do retorno do recalcado, mas com a tonalidade afetiva e representacional própria do fato alucinatório”[19]. Há aqui uma compreensão metapsicológica que caminha na linha da alucinação negativa, e não da recusa, para pensar o narcisismo do negro e o rompimento dos elos com a realidade. No entanto, identificamos no autor a existência de expressões ilustrativas da recusa, ao sugerir uma perda de diálogo entre duas partes do psiquismo, dada a cisão do Eu. Eis algumas delas: “pensamento opera um compromisso: afirma e nega a presença da negritude”, “dúvida deixa de existir para o sujeito negro” [20].

Sustento a hipótese da recusa diante da constituição narcísica do negro quando penso que este é um processo transgeracional vivido à custa de ataques à filiação do sujeito negro e de sua construção identitária, culminando na impossibilidade de pensar sobre a própria identidade. Na tentativa de compreender esta impossibilidade do negro, curiosamente, tanto Costa quanto Penot utilizam recursos imagéticos semelhantes para ilustrar a relação – ou não relação – entre instâncias ideais, mais precisamente entre o Eu e Ideal de Eu. Enquanto o primeiro autor faz a imagem de um fosso que o sujeito negro tenta transpor à custa de uma impossibilidade de equilíbrio psíquico, o segundo fala sobre a perturbação de referências das quais dependem a sustentação do narcisismo, atentando para uma zona psíquica, ou seja, um lugar onde a abolição simbólica é mantida pela recusa e irá se manifestar como local de predileção da compulsão à repetição/pulsão de morte.

Pensemos agora sobre o fetichismo e sua presença na constituição narcísica do negro. O que o negro, sujeito que vive tantos entraves significativos no exercício do pensamento, faz com aquilo que sabe?

Segundo Costa[21], o negro sabe que o branco criou a inquisição, o colonialismo, o imperialismo, o anti-semitismo, o nazismo, o stalinismo e tantas outras formas de opressão ao longo da história. Também sabe que o branco criou a escravidão. O negro sabe tudo isso e, talvez, muito mais. Porém, a brancura transcende o branco. A brancura faz-se fetiche, ideal cultural imaculado, enquanto o negro, nesse sentido, é este que ainda não consegue transpor o registro do “Eu sei, mas mesmo assim” para uma formulação do tipo “Eu sei, é isso mesmo”, quando se trata da admissão da realidade de sua própria identidade. Diante da relação com a brancura fetiche, algo desta realidade não poderá ganhar significado e seguirá carente de simbolização nesta problemática narcísica.

Freud parte do Fetichismo de 1927[22] para pensar a respeito da função do objeto fetiche para o psiquismo. O fetiche surge como um tamponador, substituto do falo, representante da tentativa de manutenção da crença em uma mãe não castrada. Este objeto, segundo Freud, será superinvestido, sofrerá um aumento extraordinário, monumental, proporcional ao horror do sujeito à castração. Diante da atitude dividida do sujeito frente à castração, o fetichista viverá uma experiência de indício de triunfo sobre a ameaça de castração e uma proteção contra ela ao mesmo tempo. Penot, nesta mesma linha, chega a nomear o fetiche como uma neo-proteção, ou seja, algo que poderia assegurar a alguns sujeitos uma suficiente proteção narcísica que permitiria evitar-lhes o agravamento das consequências da clivagem de seu ego na relação com a realidade. O fetiche, nesse sentido, por mais paradoxal que pareça, opera uma função protetiva de um colapso psíquico total. Afinal, sem ele, o psiquismo clivado poderia chegar a uma condição de insuportabilidade tal que ameaçaria sua integridade, desembocando, talvez, em uma construção delirante.

Não obstante, neste mesmo texto, Freud nos lembrará de que a relação do sujeito com seu objeto fetiche não viria marcada apenas pela afeição. Segundo ele, a afeição e hostilidade correm paralelas com a recusa e o reconhecimento da castração, e estão mescladas em proporções desiguais, em casos diferentes, de maneira a que uma e outra seja mais facilmente identificável. Com isso, penso sobre a relação que o negro pode vir a estabelecer com a brancura fetiche tomando-a como referencial identitário, ideal impossível que se tornará depositário de muita idealização e ódio.

Racismo: o discurso ao estrangeiro e a vivência do desmentido

Koltai [23] aponta que é preciso um discurso social para se falar no racismo propriamente dito. Segundo a psicanalista, o racismo explícito precisa nomear esse estrangeiro que você tem que temer, não se tratando somente de uma simples questão de agressividade e ódio, mas de linguagem. A linguagem, neste sentido, é pensada a partir da passagem da xenofobia ordinária para o racismo. Enquanto a xenofobia ordinária refere-se a um momento mais precoce da constituição, em que todos nós, humanos, manifestamos reações de recuo perante um rosto desconhecido – o que foi chamado de angústia do oitavo mês – de onde advirá, com o processo de socialização, um nós que se oporá aos outros, instalando um campo indiscriminado de angústia nesta relação[24]; o racismo, por sua vez, diz respeito a um momento posterior, quando a angústia passa a se configurar como medo, adquirindo nome, direção e argumento. Trata-se de uma situação na qual o sujeito, respaldado por um discurso, faz o apontamento do outro como alvo do não reconhecimento e de um ódio de si – constituinte – que carrega consigo e será vetorizado contra personagens da cultura. Nesta relação, ocorre a expulsão do mau e a introjeção do bom na conservação do Eu, remetendo-nos a um momento inicial da constituição psíquica no qual, para o Eu, o que é mau e o que é forasteiro, o que se acha fora, são idênticos inicialmente[25].

O racismo, desde esta articulação com o estrangeiro, deve ser compreendido tanto pela perspectiva da insuportabilidade que cada sujeito encontra ao ter que se haver com a própria estrangeiridade inerente, quanto pela perspectiva histórica, que o denuncia como criação moderna, tributo do discurso da ciência e do capitalismo, produtores da noção de exploração do outro em sua força de trabalho agregado à concepção de inferioridade de uma raça em relação à outra. Entende-se que estes aspectos estarão presentes na constituição do sujeito e do laço social, de modo que a relação com o estrangeiro nunca se dará pela via da indiferença.

Lebrun[26], ao referir-se aos discursos formadores da subjetividade, debruçou-se sobre o fenômeno do nazismo enquanto sistema discursivo totalitário também muito bem respaldado por uma ideologia. Filho de um discurso, rebento de uma retórica a serviço da saúde humana, o nazismo justificou-se na biologia racial, pela legitimidade científica, valendo-se da medicina como racionalidade da ciência que estaria convocada para conjurar a doença de um sistema. Neste sentido, não mais um sujeito, mas um sistema justificaria os mecanismos de desumanização de judeus e outras minorias sem dificuldade, de um modo que a câmara de gás, nesta lógica, não passaria de um procedimento médico para vidas que não valiam a pena serem vividas, o judaísmo seria descrito como uma tuberculose de raças dos povos a ser eliminada, e a famosa saudação Heil Hitler poderia ser traduzida por “Que Hitler esteja em boa saúde”.

Ao considerarmos a sustentação da desumanização por um discurso ideológico, transcendemos a relação binária e reducionista de um carrasco com sua vítima e passamos a olhar para o sistema regente onde ambos se constituem. A questão da violência ao outro se complexifica, na medida em que a não consideração deste outro como ser pertencente à raça humana, não somente pelo seu carrasco, mas por todo o sistema social ao qual pertence, equivale a desinscrever qualquer terceiridade, ou seja, qualquer possibilidade de reconhecimento da humanidade e da violência contra ela que ali ocorre. Diante de situações de extrema violência, a metáfora fundadora do humano estaria recusada, nos diz Lebrun[27].

O reconhecimento fundamental de uma violência contra a humanidade, no caso do nazismo, veio a acontecer, felizmente. Todavia, cabe pontuar que a magnitude de episódios aniquiladores da identidade humana, com potencial de assujeitamento e deslegitimação de raças e povos, tal como ocorreram ao longo da vigência do regime nazista, revelaram-se tão excessivas, que ultrapassaram as possibilidades de entendimento e significação humana. As palavras, meio de simbolização propriamente dito, se revelaram faltantes em um primeiro momento e, somente a posteriori, o nazismo veio ganhar o nome, a definição e o estatuto de crime contra a humanidade[28]. O reconhecimento da experiência traumática não se dá imediatamente.

O corpo alvejado pelo racismo, neste sentido, é este que viverá uma experiência traumática de atentado à sua própria integridade narcísica, além da destituição de um lugar de sujeito que lhe caberia como direito. A vivência do traumático coloca em pauta a falta de condições de representação de um excesso a que o sujeito foi submetido, introduz a falta de reconhecimento enquanto elemento que dará ao trauma um caráter desestruturante para quem o vive, além do apontamento da recusa como possível caminho defensivo para o Eu. Uchitel[29] tratou da questão da falta de reconhecimento do evento traumático e suas consequências para o sujeito, evocando, para isso, uma passagem de Ferenczi:

“A memória do acontecimento não é o traumático. O que resultará traumático será a experiência que põe em dúvida o sistema –até então confiável – de relações, representações e valores, que ataca o self e suas construções, pelo qual nem o si mesmo nem os outros serão mais os mesmos”.

Diante do desmentido, o trauma não permite que a experiência se inscreva simbolicamente. A percepção, quando traumática, não se inscreve, não se transcreve, havendo de imediato uma abolição simbólica que a coloca no circuito repetitivo da pulsão de morte.

Para pensar sobre a presença do racismo na cultura brasileira faz-se necessário olhá-la desde o paradoxo do desmentido: ao mesmo tempo em que percebido como algo institucionalizado – vide relatório da ONU – ele permanece em algum grau como não reconhecido, considerado tema a não ser abordado ou inexistente. Se em 1890, dois anos após a abolição da escravidão no Brasil, fez-se um hino que dizia “nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre país”, não esqueçamos que em 2014, dois séculos depois, após tantas transformações, criação de leis que institucionalizaram, nomearam e incriminaram a prática do racismo no país, ainda há um Rei que manda calar, reiterando que “quanto mais falar, mais vai ter racismo”.

Crença na nobreza de um país sem passado, crença no silêncio enquanto meio de lidar com a violência, crença em uma história fetiche. Acreditamos nisso? A crença, neste sentido, deve ser pensada como veículo para a recusa da realidade e para a manutenção de um saber de si. Veículo de sustentação identitária, suporte para a elevação narcísica a despeito de qualquer revelação confrontadora da realidade. “Os casos de crenças, são casos de amor. Não existem razões a favor ou contra isso”, “Qual a diferença entre acreditar e estar certo?”, ”Por que as pessoas preferem acreditar quando dispõem de meios para saber?[30].

A crença também deve ser incluída no campo da linguagem, já entendida como insuficiente e falaciosa, moduladora de furos, lapsos e parcialidades no exercício da transmissão psíquica. Afinal, o que seria passível de transmissão ou não de uma geração a outra e quais os papéis das crenças nesta levada? Trata-se de uma questão complexa. Por enquanto, situo a crença dentro de uma ambiguidade importante: tanto em seu caráter encobridor de conteúdos de magnitudes pulsionais desestabilizadores de narcisismos, em sua presença tamponadora desde um hino do século XIX – eis o brasileiro que sabe que é, mas não se acredita racista – quanto em seu caráter de aposta no sujeito e na palavra, em seu poder revelador e transformador – eis minha motivação para escrever este artigo.

Referências Bibliográficas

Costa, J. F., Violência e Psicanálise. Ed. Graal. Rio de Janeiro. 2003.

Freud, S., Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos (1925). Obras Completas, volume 16. O Eu e o Id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925). Tradução Paulo César de Souza. Ed. Companhia das Letras. São Paulo. 2011.

________, A negação (1925). Obras Completas, volume 16. O Eu e o Id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925). Tradução Paulo César de Souza. Ed. Companhia das Letras. São Paulo. 2011.

________, Fetichismo (1927). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, volume XXI. Edição Standard Brasileira. Ed. Imago. Rio de Janeiro. 1996.

________, O Eu e o Id (1923). Obras Completas, volume 16. O Eu e o Id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925). Tradução Paulo César de Souza. Ed. Companhia das Letras. São Paulo. 2011.

________, O Inquietante (1919). Obras Completas, volume 14. História de uma Neurose Infantil (“O homem dos Lobos”), Além do Princípio do Prazer e outros textos (1917-1920). Tradução Paulo César de Souza. Ed. Companhia das Letras. São Paulo. 2011.

Koltai, C., Da xenofobia ao racismo: mal-estar moderno. Revista Percurso n 51, p 127-150. Dezembro 2013.

Lebrun, Jean-Pierre, Um mundo sem limite – ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Ed. Companhia de Freud. Rio de Janeiro. 2004.

________, O mal-estar na subjetivação. Ed. CMC. Porto Alegre. 2010.

Mannoni, O., Eu sei, mas mesmo assim. Tradução de Mary Kleinman. Psicose: uma leitura psicanalítica. Chaim Skatz org.. São Paulo: livraria Escuta, 1991, 2ª edição.

Novaes, A.. Mutações: a invenção das crenças. Ed. SESC SP. São Paulo. 2011.

Penot, B., Figuras da Recusa: Aquém do Negativo. Ed. Artes Médicas. Porto Alegre. 1992.

Ribeiro, R.J., in Costa, J.R. Razões públicas emoções privadas. Ed. Rocco. 1999.

Rosa, M.D., Histórias que não se contam – o não-dito na psicanálise com crianças e adolescentes. Ed. Casa do Psicólogo. São Paulo. 2009.

Uchitel, M., Neurose Traumática: uma revisão crítica do conceito de trauma. Ed. Casa do Psicólogo. São Paulo. 2001.

Zygouris, R., De alhures ou de outrora ou o sorriso do xenófobo. In: O estrangeiro. Ed. Escuta. São Paulo. 1998.

Portal https://pt.wikipedia.org/wiki/Holocausto

Portal http://pt.wikipedia.org/wiki/Senzala

Portal www.senzala-sp.com.br/restaurante

– http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,racismo-e-estrutural-e-institucionalizado-no-brasil-diz-a-onu,1559036. Racismo é “estrutural e institucionalizado” no Brasil, diz a ONU. Setembro/2014.

– Portal http://globoesporte.globo.com/futebol/selecao-brasileira/noticia/2014/09/pele-sobre-participacao-brasileira-na-copa-do-mundo-um-desastre.html. Pelé faz crítica a Aranha “Quanto mais se falar mais vai ter racismo”. Setembro/2014.

– Portal http://www.revistaforum.com.br/blog/2015/06/senzala-nunca-mais-intervencao-artistica-contesta-nome-de-restaurante-em-sp/

[1] Grifos meus.

[2] Jornal O Estado de São Paulo. “Racismo é ‘estrutural e institucionalizado’ no Brasil, diz a ONU”. Disponível em http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,racismo-e-estrutural-e-institucionalizado-no-brasil-diz-a-onu,1559036.

[3] Mito que denota a crença de que o Brasil escapou do racismo e da discriminação racial identificada com clareza em outros países. Pesquisadores desmitificaram esta idéia ao dizer que o preconceito racial, embora não admitido como existente está intrínseco à sociedade. Assim, constataram que ainda que a maioria da população brasileira se afirme não preconceituosa, apontará que conhece alguém próximo que o é. Para conhecer mais a fundo a noção de democracia racial, recomendo a leitura da obra Casa Grande e Senzala (1933), escrita pelo historiador e sociólogo Gilberto Freyre.

[4] Globo Esporte. “Pelé faz crítica a Aranha “Quanto mais se falar mais vai ter racismo”. Disponível em http://globoesporte.globo.com/futebol/selecao-brasileira/noticia/2014/09/pele-sobre-participacao-brasileira-na-copa-do-mundo-um-desastre.html.

[5] M. D. Rosa, Histórias que não se contam – o não-dito na psicanálise com crianças e adolescentes. Ed. Casa do Psicólogo. São Paulo. 2009.

[6] Aqui, o substantivo “despercebido” foi usado para denotar algo que embora presente em frases formuladas pelos sujeitos como palavras, surge como ausente do ponto de vista do reconhecimento de sua existência. O “despercebido” não se refere a um conceito. Trata-se de uma palavra forjada para expressar as diferentes possibilidades de evitação da existência de um conteúdo para o psiquismo de um modo geral, antes de identificar qual seria o estatuto psíquico desta evitação.

[7] S. Freud, “A negação” (1925), in Obras Completas, vol. 16. Tradução Paulo César de Souza. Ed. Companhia das Letras. São Paulo. 2011.

[8] S. Freud. “Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos” (1925), in Obras Completas, vol. 16. Tradução Paulo César de Souza. Ed. Companhia das Letras. São Paulo. 2011.

[9] Portal www.senzala-sp.com.br/restaurante

[10]Portal http://pt.wikipedia.org/wiki/Senzala

[11] O. Mannoni. “Eu sei, mas mesmo assim”, Tradução de Mary Kleinman, in Psicose: uma leitura psicanalítica. Chaim S. Katz org.. São Paulo: Livraria Escuta, 1991, 2ª edição.

[12] O. Manonni. op cit.

[13]Ribeiro, R.J, in Costa, J.R. Razões públicas emoções privadas. Ed. Rocco. 1999.

[14]Em 2012, o Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, interpelado pelas questões políticas e subjetivas postas em torno da questão do racismo em nossa sociedade, promoveu um evento com a proposta de discutir a temática, trazendo números relevantes acerca do período escravocrata no Brasil. Trata-se de um período de 320 anos de escravidão que redundou em 70 milhões de mortes de negros escravizados.

[15] Agradeço ao meu amigo, Marcos Castilha, por um dia ter levantado, despretensiosamente, esta questão que permaneceu em minha cabeça por anos, desembocando nesta problematização. Também vale a pena mencionar que uma reportagem do site http://www.revistaforum.com.br/blog/2015/06/senzala-nunca-mais-intervencao-artistica-contesta-nome-de-restaurante-em-sp/, noticiou uma intervenção artística ocorrida em junho de 2015 no Restaurante Senzala. Os artistas, negros, protestaram contra o nome do estabelecimento, erguendo faixas de indignação. Em uma delas estava escrito “Restaurante Auschwitz”.

[16] B. Penot, Figuras da Recusa: Aquém do Negativo. Ed. Artes Médicas. Porto Alegre. 1992.

[17] J.F.Costa, Violência e Psicanálise. Ed. Graal. Rio de Janeiro. 2003.

[18] S. Freud. O Eu e o Id (1923). Obras Completas, volume 16. O Eu e o Id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925). Tradução Paulo César de Souza. Ed. Companhia das Letras. São Paulo. 2011

[19] J.F. Costa, op. cit.

[20] J.F. Costa, op cit.

[21] J.F.Costa, op.cit.

[22]Freud, S. Fetichismo (1927). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, volume XXI. Edição Standard Brasileira. Ed. Imago. Rio de Janeiro. 1996.

[23] C. Koltai. “Da xenofobia ao racismo: mal-estar moderno”, Percurso n. 51, São Paulo, 2013, p 127-150.

[24] Radmila Zygouris traz elementos para pensar nesta dimensão. Ela teoriza a respeito da dimensão constituinte da angústia, postulando que lidar com o estrangeiro é lidar com resíduos não simbolizados desde a constituição do narcisismo. Segundo a autora, após o reconhecimento do Eu, permanece na criança, algo do não separado, que não foi absorvido por nenhuma representação, nem de si própria, nem do outro, o que se constituirá como matéria prima para a vivência do Umheimlich (1919), a do estrangeiro como resto de estrangeiridade no próprio sujeito.

[25] S. Freud. A negação (1925). op.cit.

[26] J- P, Lebrun. Um mundo sem limite – ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Ed. Companhia de Freud. Rio de Janeiro. 2004.

[27]J-P, Lebrun. O mal-estar na subjetivação. Ed. CMC. Porto Alegre. 2010.

[28] Segundo a enciclopédia virtual Wikipédia, apenas em 2007, entrou em vigor uma lei sancionada pela União Europeia (UE) que pune com prisão quem negar o Holocausto. Em 2010, a UE também criou a base de dados europeia EHRI (em inglês: European Holocaust Research Infrastructure) para pesquisar e unificar arquivos sobre o genocídio. A Organização das Nações Unidas (ONU) homenageia as vítimas do Holocausto desde 2005, ao tornar 27 de janeiro o Dia Internacional de Recordação do Holocausto, por ser o dia em que os prisioneiros do campo de concentração de Auschwitz foram libertos. Ao constatar o caráter recente destas políticas, podemos pensar tanto sobre o tempo necessário para a elaboração psíquica do horror e para a criação de iniciativas de reconhecimento do traumático existente em uma história, quanto na permanência dos efeitos de uma atrocidade por anos a fio, mobilizando na humanidade, tentativas de reparação do mal e de suas marcas ainda hoje.

[29] M, Uchitel. Neurose Traumática: uma revisão crítica do conceito de trauma. Ed. Casa do Psicólogo. São Paulo. 2001.

[30] A, Novaes “Mutações: a invenção das crenças”. Ed. SESCSP. 2011. Ao retomar os filósofos Victor Brochard e Wilhelm Busch.