por Cláudia de Almeida Gallo
“Houve um tempo na Grécia arcaica em que as palavras faziam parte do mundo das coisas e dos acontecimentos. A palavra, juntamente com as condições de sua enunciação, não valia apenas por seu sentido manifesto, mas como signo a ser decifrado. Através de tal processo, um outro sentido, oculto e misterioso, emergia numa profusão interminável de decifrações. Essa era a palavra do aedo, poeta-profeta, palavra portadora da alétheia, da verdade. O psicanalista seria aquele que sabe que o relato do paciente é um enigma a ser decifrado. E, no enigma, verdade e engano são complementares, e não excludentes.”(L.A. Garcia-Roza)
Depois de tanto já ter sido dito e escrito sobre a cura pela fala, ou “talking cure”, o que demonstra a dimensão da importância desta descoberta, parece que nada mais restaria a ser dito sobre este assunto. Entretanto, ainda assim permanece o impacto em cada um que lê ou relê os primeiros textos freudianos.
Acompanhamos, já à distância, a genialidade e ousadia de Freud e entendemos que, por mais antiga que seja sua descoberta, será sempre na perspectiva da invenção que precisamos situá-la. E é neste sentido que toda nova mirada a estes textos se justifica, para apoiar a invenção da clínica nossa de cada dia.
Neste trabalho pretendo, destacando as passagens do próprio corpo dos textos freudianos do final dos oitocentos, refazer o caminho através do qual pouco a pouco se revelou a Freud sua própria descoberta – invenção.
Esses textos, escritos a partir de 1893 até 1895, situam-se numa época anterior ao chamado nascimento da Psicanálise, cujo marco considera-se a “Interpretação dos Sonhos”, texto de 1900. Contudo, embora ainda de forma embrionária, neles encontramos o esboço das principais noções e conceitos que futuramente constituíram-se nos pilares do novo saber. Dentre eles, como marco revolucionário, podemos destacar o lugar da fala livre e sua correspondente, a escuta.
Um pouco de história
No final do século XIX como uma crítica ao saber médico vigente à época, nasceu uma alternativa. Frente às limitações encontradas no tratamento de mulheres, com sintomas físicos não explicados por causas orgânicas, e impelido por enorme curiosidade e inclinação investigativa, Freud empreendeu uma longa jornada na busca de respostas a este fenômeno, levando-o a construir a partir daí um arcabouço teórico e técnico de inestimável valor, a Psicanálise.
As histéricas intrigavam os médicos com sua profusão de sintomas impossíveis de serem tratados com os métodos correntes, não havia naquela altura compreensão da especificidade desse quadro clínico e tampouco tratamento específico. A dor histérica e seus sofrimentos eram acompanhados segundo a prática clínica vigente, a observação dos fenômenos e a busca de sua resolução. A ênfase situava-se no olhar.
Porém, na França iniciava-se um novo modo de tratamento, idealizado por Charcot, que pretendia curá-las utilizando o método da hipnose. Este consistia em, induzir a paciente a um estado semiconsciente, no qual a mesma era estimulada a recordar lembranças passadas e extravasar seus sentimentos relativos às mesmas, os quais até então estariam represados. A seguir, retornando à consciência, os sintomas desapareceriam.
Interessado pelo assunto Freud já o estudava. Sabendo dos trabalhos de Charcot decidiu então, aprimorar seus estudos com ele e durante algum tempo utilizou a técnica da hipnose com os mesmos objetivos, a recordação do trauma e a derivação por reação, desbloqueio da estase pulsional através de uma reação emocional.
Entretanto, Freud observava que embora o tratamento suprimisse o sintoma, este desaparecimento era temporário, retornando em seguida de outro modo. Fez então, a seguinte suposição: embora fosse importante que a paciente recordasse seu momento traumático, esta lembrança deveria acontecer através de um trabalho consciente e voluntário de dominar a crítica e a censura e não mais sob estado hipnótico.
A partir de então, alterou-se a prática clínica e iniciou-se a construção de um novo método, no qual a ênfase deslocava-se progressivamente para a descoberta dos mecanismos que provocavam a dor histérica, e sua compreensão vinha através da escuta do que a paciente dizia em estado de vigília.
Abandonada, ainda que não de todo, a hipnose, Freud foi à busca de novas técnicas para estimular a fala. Iniciou com o apremio, insistência, ou em suas palavras “coerção psíquica”, para que a paciente revelasse tudo o que estivesse pensando, sem censurar, ainda que os conteúdos parecessem irrelevantes, inconvenientes, ilógicos. Serviu-se também, de um pequeno artifício, ligeira pressão na testa da paciente acompanhada da afirmação de que lhe ocorreria uma lembrança qualquer ou mesmo uma imagem, e se comprometia a delas dar conta, quaisquer que fossem.
Com o passar do tempo, ele foi abandonando todas estas técnicas à medida que suas teorias se desenvolviam. O aprofundamento da compreensão acerca da função das defesas, da resistência oferecida ao processo de cura e sua relação com a figura do médico, a transferência, o levaram pouco a pouco a enfatizar o trato destas questões, interpretando-as, em um processo de esclarecimento e dispensando estes artifícios.
Mas, naquela altura, eram essas intervenções que constituíam a base técnica do novo método, chamado análise catártica.
A fala livre ganhando seu lugar
Em seu texto “O Mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos”, conhecido como “Comunicações Preliminares”, escrito em1893, em parceria com Josef Breuer, Freud afirma explicitamente ainda não haver encontrado as causas internas da histeria, apenas se aproximado dos mecanismos dos sintomas histéricos. A busca dirigia-se para a identificação da relação causal entre o sintoma aparente e o trauma vivido que o justificaria, este atuaria como causa inicial, do mesmo modo como uma antiga dor nos leva às lágrimas. “Assim, pois, as histéricas sofrem principalmente de reminiscências”
Buscar a recordação do trauma e sua expressão emocional tornou-se o objetivo do tratamento. Em outro trecho do mesmo texto, ele diz: “… os diferentes sintomas histéricos desapareciam imediata e definitivamente quando se conseguia despertar com toda clareza a lembrança do processo provocador e com ele o afeto concomitante, e descrevia a paciente, com o maior detalhe possível, dito processo, dando expressão verbal ao afeto”.
Entretanto o que era mais evidenciado, na época, como causa dos sofrimentos, era principalmente a perda ou debilitação dos afetos, sobretudo quando o sujeito não reagia aos fatos, pois uma vez ocorrida alguma reação grande parte do afeto desapareceria, pois seria devidamente descarregado. A recordação desprovida de afeto carecia quase sempre de eficácia. Porém, ele não deixa de enfatizar: a lembrança de uma ofensa respondida ainda que somente com palavras, produz efeito muito diverso daquela tolerada sem protesto. A fala estava definitivamente em questão.
O homem encontra na palavra um subproduto do ato, podendo substituí-lo por ela, através da qual o afeto pode ser descarregado. Muitas vezes a própria palavra é o meio mais adequado para aliviar o peso do trauma. Quando não se produz nenhuma reação, seja por atos ou palavras, a lembrança do fato conserva a intensidade afetiva e sua força patogênica.
Porém, a ab-reação não era a única forma de anular os efeitos traumáticos de uma determinada experiência. A recordação entra no complexo associativo do sujeito, podendo ser corrigida por outras representações, contribuindo para reduzir os efeitos negativos no próprio indivíduo. Com o passar do tempo, as lembranças sofreriam uma espécie de desgaste e perderiam a capacidade de produzir enfermidade. Quando os dois meios de descarga encontram-se impedidos, tanto a reação por ato quanto por elaboração associativa, as marcas permanecem intactas e disponíveis para vir à tona ao encontrar uma condição que as favoreça.
O método desenvolvido por Freud, naquela altura, atuava curativamente anulando a eficácia da representação não descarregada inicialmente, dando saída, por meio da expressão verbal, ao afeto correspondente, que havia permanecido estancado e levando a correção associativa, por meio de sua atração à consciência normal ou de sua supressão por sugestão.
A relação entre recordar e exprimir, verbal e emocionalmente, experiências traumáticas vividas no passado, permaneceu na linha de frente da compreensão freudiana para o tratamento da histeria. Seus casos clínicos, descritos nessa época, são prova viva desta aposta teórico-clínica, como no exemplo da Srta. Elizabeth Von R.
Buscando compreender a enfermidade de sua paciente, Freud investigava arduamente as lembranças relativas à época do surgimento de seus sintomas e as manifestações contemporâneas, com o objetivo de relacioná-las entre si encontrando o fio que as ligava, incentivando sua expressão. Ele percebia a existência de um conflito entre forças opostas e afirmava que: “… o resultado deste conflito era a expulsão da representação erótica da associação e o afeto concomitante era utilizado para intensificar ou renovar uma dor psíquica ocorrida simultaneamente ou pouco antes”.
A paciente era convidada a falar e:… “quando emudecia, porém manifestava continuar seguindo dores, podia ter a segurança de que não me havia dito tudo e a instava a continuar sua ‘confissão’ até que a dor desaparecia”. Ficava cada vez mais clara, a compreensão de que as dores eram uma manifestação desviada, deslocada dos afetos aos quais corresponderiam, e também se tornava cada vez mais explícita, a relação entre o ato de fala e a remissão das dores. As lembranças esquecidas deveriam ser novamente incluídas nas associações.
Porém, o quê deveria ser recordado ainda era uma questão para Freud. Ele sabia que se tratava de assuntos referentes à sexualidade, vividos na primeira infância, mas relacionava-os a traumas reais, seduções sofridas por suas pacientes, e em última análise perpetradas por seus pais, pois as lembranças a isso remetiam.
Somente em setembro de 1897, quatro anos depois, em uma carta a Fliess, ele abandonou a tese que ficaria conhecida como “Teoria da sedução”, finalmente admitindo, em sua famosa frase “… não acredito mais na minha neurótica.” A partir daí, abriu-se o caminho para dar à fantasia o estatuto de realidade, entretanto muito caminho ainda teria que ser percorrido.
Em 1895, no texto “Psicoterapia da Histeria” Freud deu continuidade às suas investigações sobre o tema da histeria, desenvolvendo-o um pouco mais. Agora escrevendo sozinho, sem mais a presença de Breuer, assumiu algumas mudanças de posição. Ao mesmo tempo em que abandonava certas linhas de entendimento do fenômeno, importantes inovações eram afirmadas, como por exemplo: o desvelamento da existência de processos defensivos e sua relação com as representações de natureza penosa; a descrição do processo de repulsa pelo eu destas representações e suas motivações; a compreensão dos fenômenos transferenciais e a respectiva resistência e tantos outros caminhos que este texto nos convida a seguir.
Contudo, para manter o objetivo deste trabalho, devo abdicar de seguir estas atraentes trilhas e destacar o primeiro parágrafo do texto onde ele retoma a idéia já apresentada em 1893, reafirmando a importância da expressão verbal dos afetos no tratamento da histeria e sua relação com a recuperação da memória esquecida.
Em outra passagem do referido texto, ao esclarecer as vantagens do procedimento da pressão na fronte, ele se refere a retirar as atenções da paciente de seus assuntos e reflexões conscientes para conduzi-la ao encontro das representações patógenas. Estas, supostamente esquecidas, se encontrariam sempre “por perto” e poderiam ser encontradas por meio de associações acessíveis, necessitando apenas superar um certo obstáculo, a vontade do sujeito.
Na medida em que as representações patógenas raramente encontravam-se próximas da superfície, o que costumava emergir eram elementos intermediários, entre o ponto de partida e a representação buscada, ou seja, elos de uma nova série de pensamentos e lembranças. O que se tornava visível era o caminho que conduzia às representações esquecidas e que indicava o sentido em que a investigação deveria continuar.
Esta idéia de elos, de uma corrente, nos faz pensar que se tratava de restabelecer a cadeia associativa do sujeito, ligando as representações em algum momento separadas. Seguindo este fio, podemos encontrar indícios da percepção de Freud da importância não apenas da expressão verbal, mas também dos processos de produção da fala, ou seja, como é produzido o que será dito, os caminhos percorridos até que se dê a manifestação através da fala. Os obstáculos criados pela resistência e as trilhas de facilitação encontradas.
Considerações finais
Algum tempo depois, Freud abandonou o método catártico, não buscava mais a rememoração de fatos traumáticos específicos, não acreditava mais em vivências únicas que determinavam o quadro histérico. Portanto, não buscava uma manifestação emocional relacionada exclusivamente a elas.
Por outro lado, manteve sua convicção na etiologia sexual das neuroses e no fato de que ao falar revelava-se, ou dito de outro modo, emergia um sujeito, com toda a riqueza de suas vivências, suas fantasias, seus conflitos, seus impasses, seus sonhos, esperanças e desejos. Vencer as resistências do recalque e, suprimir as lacunas da memória permaneceu durante mais algum tempo, o objetivo de seu trabalho. A comunicação oral tornou-se a partir de então, e para sempre, a modalidade de trabalho da nova ciência, e a fala a matéria prima com a qual lida o psicanalista.
Instituída a técnica da associação livre, tarefa que cabe ao paciente, criou-se sua correspondente no analista, a atenção flutuante. Nesta posição, este não deve selecionar os conteúdos trazidos à tona pelo paciente, não deve esperar ou buscar coerência lógica no discurso, sobretudo deve ater-se ao fato de que o que está em cena é outra lógica, aquela produzida pelo inconsciente e que funciona por modalidades especiais de formação e expressão.
Finalmente, através destes textos, pudemos acompanhar a passagem progressiva da fala em estado hipnótico para o exercício voluntário e consciente da mesma, embora sabendo que esta é orientada pelas determinações inconscientes. E a mudança, no que diz respeito à posição do analista, do olhar dirigido aos fenômenos observáveis no paciente à escuta dos seus relatos, incluídos aqui suas brechas e falhas.
É no âmbito da linguagem, desde o início que Freud se move. É seu ponto de partida teórico e o lugar a partir do qual localiza a emergência do humano. Somos humanos por nascer no registro da linguagem e sujeitos por nele permanecer.
Referências bibliográficas:
Breuer, J. e Freud, Sigmund (1893) “El mecanismo psíquico de los fenômenos histéricos” (Comunicación preliminar) in Obras Completas vol.10. Buenos Aires. Ed. Santiago Rueda.
Freud, Sigmund (1895) “La Histeria” cap.2. ‘Histórias clínicas’ in Obras Completas vol.10. Buenos Aires. Ed. Santiago Rueda.
Freud, Sigmund (1895) “La Histeria” cap.3. ‘Psicoterapia de La Histeria’ in Obras Completas vol.10. Buenos Aires. Ed. Santiago Rueda.
Freud, Sigmund (1894) “Las Neuropsicosis de defensa” in Obras Completas vol.11. Buenos Aires. Ed. Santiago Rueda.
Garcia-Roza, Luis Alfredo (1998) “Palavra e verdade: na filosofia antiga e na psicanálise”. Rio de Janeiro. Ed. Jorge Zahar.
Gay, Peter (1989) “Freud: uma vida para o nosso tempo”. São Paulo. Ed. Companhia das Letras.